Desde a paz de Westfália, em 1648, que terminou com a devastadora Guerra dos Trinta Anos e proclamou a sua supremacia, o Estado nacional não lhe tinha a autonomia tão posta em causa quanto nos dias de hoje. A desafiá-lo estão os argumentos da responsabilidade de proteger e o direito de intervir, já bastante consolidados no direito internacional e em resoluções da ONU. Entre as justificações para intervir figuram principalmente: evitar que as populações sejam vítimas de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Além destes motivos de inegável valor moral, figuram outros mais sujeitos a interpretações, como a ameaça à democracia (objeto da polêmica suspensão do Paraguai pelo Mercosul), a irresponsabilidade na proteção do meio ambiente e a gestão equivocada dos gastos e do endividamento públicos. A globalização e a difusão universal e instantânea da informação contribuiram decisivamente para gerar todas estas situações.
No primeiro caso, figura o genocídio da população muçulmana da Bósnia pelas tropas sérvio-bósnias, que motivou a intervenção das tropas da Otan e o julgamento do general sérvio Rado Mladic pelo Tribunal de Haia, entre outros. Ao inverso, a omissão das potências internacionais no genocídio de Ruanda e no massacre de populações civis pelo regime sírio de Bashar Assad causam comoção e debates muito agudos, embora nenhuma ação aberta. No campo dos direitos humanos, nenhum país pode mais alegar seus direitos soberanos sobre os acontecimentos internos. O argumento não possui mais qualquer legitimidade, nem é mais politicamente possível refugiar-se atrás do conceito de soberania quando se trata de casos extremos de violação dos direitos humanos. Há instituições que proferem sentenças obrigatórias e centenas de organizações privadas que investigam, denunciam e condenam violações de direitos humanos.
Em matéria econômica, do mesmo modo, numerosas são as instâncias que passam julgamentos, muitas vezes catastróficos, sobre a política dos Estados. O Fundo Monetário Internacional tem, por decisão dos próprios governos, uma missão verificadora. Outras instituições independentes passam seus julgamento: são as agências de rating que dão notas aos papéis emitidos pelos países a fim de levantar recursos de investidores internacionais. O próprio mercado é o maior juiz do comportamento dos Estados. Pode tornar-se um adversário temível, que não desiste de atacar um país em dificuldades, podendo até provocar consequências graves, como desvalorizações cambiais, insolvências e moratórias, ausência de crédito internacional.
É de grande destaque o papel que as organizações não governamentais desempenham em temas ambientais. Existem centenas delas, especializadas ou não em determinados tópicos específicos, que por seu conhecimento e dedicação comandam respeito e exercem influência junto à opinião pública.
Certa vez um ministro brasileiro fazia uma defesa veemente da política florestal na Amazônia junto ao seu colega italiano, Giulio Andreotti. Este ouviu com calma e depois fez a seguinte afirmação: “Ministro, tenho um barbeiro que vem diariamente em casa fazer-me a barba. Até o ano passado, ele apenas falava de política e futebol comigo. Mas agora só cobra o que estou fazendo para defender a Amazônia. Compreenda, meu caro, preciso prestar atenção nele.”
Já não é viável deixar de prestar atenção nas ONGs. Mas é preciso discutir alguns parâmetros de seu papel em cenários que eram, antes, da competência exclusiva dos Estados. Em primeiro lugar, existe a questão da legitimidade. Para os Estados democráticos o critério é simples: ela provém das urnas onde o povo manifesta-se sobre os governantes aos quais deseja atribuir o poder. As ONGs não podem aspirar a tanto, precisam afirmar-se por suas qualificações específicas e sua integridade.
Em segundo lugar, é necessário que participem das avaliações, como por exemplo as que são realizadas pelo sistema de solução de controvérsias da OMC. Não é legítimo, contudo, que aspirem a votar em pé de igualdade com os representantes governamentais nos processos em causa. As organizações não governamentais têm hoje grande prestígio e por isso atraem jovens de alta qualidade moral e profissional. Ninguém pode questionar o papel dos Médicos Sem Fronteiras, da Anistia Internacional ou do World Wildlife (WWF).
Isto dito, é preciso insistir que o papel dos Estados nacionais não pode ser rebaixado, pelo menos até o improvável dia em que for criado um sistema de governança mundial que deles prescinda.
Fonte: O Globo, 18/07/2012
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