Quando Abraham Lincoln era presidente dos Estados Unidos, apresentaram-lhe um possível nome para compor o seu Gabinete. Recusou a proposta dizendo: “Eu não gosto da cara dele”.
“Mas, sr. presidente, qual é a culpa do coitado por ter aquela cara?”
“Todo homem acima dos 40 anos é responsável pela cara que tem.”
As propagandas eleitorais gratuitas sempre me fazem recordar esse episódio, que, se não é real, é bene trovato. É possível ver a ética pela estética? Não me refiro à estética da proporcionalidade do rosto, do bronzeado, do implante de cabelo, do silicone, da taxa de gordura; numa palavra, à estética da forma física. A questão é outra: as escolhas feitas ao longo da vida, as nossas decisões, transparecem no nosso rosto? Será que a história do Pinóquio tem um fundo de verdade? As minhas mentiras deixam marcas na minha cara?
Atualmente, entendemos por ética um conjunto de valores subjetivos, organizados na medida e na hierarquia que cada um julgue relevante para uma vida digna. Mas não haveria uma ética comum, com independência do que cada um pensa? Deve haver, pois não é razoável, por exemplo, que alguém considere que mentir seja ético. Será possível entender como atitudes éticas a covardia, a ingratidão e a arrogância?
A dignidade humana parece exigir sempre algumas qualidades morais, com independência das idiossincrasias ideológicas e culturais de cada um. Esse fato – que poderia parecer uma limitação para a nossa liberdade – é o que lhe confere sentido. As nossas escolhas são relevantes.
O episódio de Abraham Lincoln faz-nos refletir não apenas sobre a nossa ética, mas também sobre a nossa estética. O que é a beleza humana? Que a garota de Ipanema seja bela ninguém discute. Mas há também uma beleza que provém da dignidade, e não se trata apenas de uma “beleza espiritual”, não sensível. A pessoa, pelas suas opções, torna-se de fato bonita. Dá gosto olhar para o seu rosto.
Seja qual for a idade, a prática de algum tipo de exercício físico sempre ajuda. Mas será que o ideal de beleza humana, especialmente na maturidade, não se apoia, sobretudo, nessa estética da dignidade? O que é um rosto bonito aos 50, aos 60 anos? São os cremes e as cirurgias que determinam? Ou são as atitudes e aquilo que os olhos expressam?
É comum ouvirmos reclamações sobre a falta de ética dos homens públicos ou da sociedade em geral. Talvez pudéssemos manifestar essa mesma indignação falando da feiura que, infelizmente, muitas vezes encontramos: rostos que poderiam expressar humanidade, mas são artificiais, não em razão das plásticas, mas pela falta de sinceridade de vida.
Exigir ética pode parecer mais fácil. Temos a impressão de que ela é um aspecto mais objetivo, mais mensurável. Já a beleza parece estar noutro âmbito. É sempre algo mais vital e exige do próprio observador a capacidade da contemplação.
Contemplar a ética pela face da estética exige um aprendizado. Não basta uma régua. Já não se trata de medir ou de enquadrar, mas de observar. Nesse sentido, a Lei da Ficha Limpa ajuda a ver, pois regula o foco. Já não vale o “rouba, mas faz”. No entanto, é ainda insuficiente. Não basta não ser assassino ou ladrão. Queremos mais dos nossos representantes.
Esse aspecto também joga algumas luzes sobre o nosso conceito de ética. De uma forma ou de outra, a ética kantiana – configurada essencialmente por deveres – é uma ética de mínimos. Seria ético quem não infringisse as normas éticas, quem vivesse o código de ética da sua profissão. “Não matei nem roubei, logo, sou uma pessoa justa.” Esse raciocínio está longe da percepção aristotélica da ética, que aponta para a perfeição do comportamento humano. Não basta abdicar do mal, é preciso ser bom de verdade.
Novamente, vemos aqui a relação entre ética e estética. A beleza também nunca é apenas uma ausência de defeitos: tem sempre algo positivo.
A sociedade capta essa relação ética e estética. Por exemplo, por que os ataques de um candidato ao seu concorrente podem ser um tiro no próprio pé, ainda que sejam verdadeiros? Porque atacar é deselegante, é feio; e pode ser facilmente percebido pelo eleitorado como antiético.
Vemos essa correlação não apenas nos políticos, mas também no Poder Judiciário. Com os magistrados temos a oportunidade de observar essa evolução – ou involução – ao longo do tempo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são um exemplo evidente. A dignidade de cada um, que no âmbito judicial se manifesta primariamente por meio da sua independência, se traduz no rosto de cada um. Quem, ao final do processo do mensalão, sairá mais bonito e quem sairá mais feio? E não se trata de ficar bem ou ficar mal perante a opinião pública, mas de ser expressão viva de humanidade, de coerência, de justiça.
“Olhar-se no espelho” não é apenas uma metáfora para a análise da consciência. O próprio rosto já é em si mesmo manifestação da consciência.
Há quem possa concluir que – ao longo deste artigo – nos encaminhamos por caminhos não republicanos e que essas reflexões são inválidas para o âmbito público. Seja na esfera privada ou pública, sempre estamos analisando comportamentos humanos, complexos, irredutíveis ao seu aspecto quantitativo. E é preciso saber ver. O rigor jurídico é necessário, especialmente em temas de Direito Penal, mas um racionalismo excessivo pode ser contraproducente.
Tanto para as próximas eleições quanto para o caso do mensalão, ver com calma o rosto dos candidatos, dos juízes, dos réus pode ajudar. Afinal, estamos lidando com pessoas, não com números. E depois dos 40 somos nós que decidimos se seremos bonitos ou feios.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 03/10/2012
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