Em janeiro de 2018, ocupei este espaço na Conjuntura Econômica para falar um pouco sobre minha curta, porém intensa, convivência com Regis Bonelli, que nos deixou em dezembro de 2017. Pouco mais de um ano depois, outra grande perda, esta de caráter ainda mais pessoal, com o falecimento em fevereiro de meu tio João Paulo dos Reis Velloso.
Em um país dominado por problemas conjunturais, João Paulo dedicou sua vida à construção do futuro. Ninguém resumiu isso melhor que seu filho, João Marcos, em entrevista ao Valor Econômico: “O que fica do meu pai é o legado de ter lutado a vida inteira pelo desenvolvimento brasileiro e encarado esse desenvolvimento como um ideal de vida”.
O termo “luta” é bastante adequado já que, embora tenha estudado profundamente o tema e publicado inúmeros livros e artigos, sua atuação sempre foi eminentemente prática, seja como ministro do Planejamento (1969-1979), seja como organizador do Fórum Nacional durante três décadas.
Sua trajetória é um exemplo eloquente do efeito transformador da educação, conforme descrito no seu livro de memórias, publicado em 2004 pelo CPDOC.1 Em um país que até hoje não dá a devida importância à educação, João Paulo e seus irmãos e irmãs tiveram a sorte de nascer em uma família que valorizava o estudo.
Nascido em Parnaíba, Piauí, em 1931, filho de um funcionário dos Correios e Telégrafos e de uma costureira, João Paulo teve uma educação de qualidade e conviveu com professores que marcaram sua vida. Meu pai, Antonio Augusto, que estudou e trabalhou com João Paulo, se lembra com admiração do professor José Rodrigues, que lecionava português no Ginásio São Luís. Também se recorda até hoje da surpresa do professor de matemática do primeiro ano de graduação em Economia na Faculdade Álvares Penteado, de São Paulo, ao constatar que as maiores notas eram de dois alunos que cursaram ensino técnico em uma escola de Parnaíba chamada União Caixeiral.
Apesar de seu brilhantismo pessoal, que o levou a obter bolsas de estudo e permitiu que tivesse acesso a boas escolas e universidades, foi um caminho difícil, que o obrigou a trabalhar enquanto cursava o ensino técnico (não havia escola de ensino médio em Parnaíba) e a faculdade em São Paulo (Álvares Penteado) e no Rio de Janeiro (atual Uerj). Foi ainda um dos primeiros economistas brasileiros a fazer pós-graduação no exterior, concluindo o mestrado na Universidade de Yale.
De personalidade discreta, João Paulo se destacou em ambientes bastante competitivos, e ascendeu ao topo da administração pública em um período em que conviveu com mentes brilhantes, como Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen e Delfim Netto. Em sua trajetória no governo, João Paulo participou da elaboração e execução de vários planos de desenvolvimento, como o PAEG, PED, I PND e, principalmente, o II PND. Não cabe aqui fazer uma análise econômica desses programas, mas apenas assinalar alguns pontos que me parecem relevantes para uma compreensão adequada do seu pensamento.
Sua visão de planejamento estava distante da ideia tradicional de um planejador central que estabelece metas quantitativas para os diversos setores da economia. Sua ideia de planejamento não era estatizante, nem protecionista. Seus textos estão repletos de referências ao dinamismo do setor privado e à importância da integração internacional. Planejar para João Paulo era ter uma visão estratégica sobre os desafios e oportunidades que se colocam para o país. Nesse sentido, deveria ser algo que evolui ao longo do tempo, na medida em que entraves são superados e surgem novos obstáculos. Embora fosse um defensor convicto do modelo de desenvolvimento então adotado, tinha consciência de suas limitações. Em particular, reconheceu em suas memórias que “o ponto fraco do antigo modelo era principalmente a desatenção à eficiência e à competitividade”.2 Também deixou registrado que “não houve a devida atenção aos mecanismos de manutenção das desigualdades contidos nas políticas sociais – educação e previdência, principalmente”.
João Paulo teve um papel central na construção de instituições de grande importância para a formulação de políticas públicas e para o debate sobre desenvolvimento. Elas refletem sua preocupação permanente com o futuro do país, assim como sua personalidade aberta a diferentes pontos de vista. Durante sua gestão no Ministério do Planejamento, o Ipea foi um espaço de livre debate de ideias, desde a controvérsia sobre o aumento da desigualdade de renda até estudos críticos sobre o II PND. Além do espírito pluralista, outra marca do Ipea foi o rigor técnico. A avaliação do trabalho de um pesquisador não tinha a ver com sua posição ideológica ou política, mas com a qualidade de sua pesquisa. Grandes economistas que se opunham à ditadura, como Regis Bonelli e Pedro Malan, publicaram trabalhos na época que se tornaram referências fundamentais para o estudo daquele período. Outra instituição de grande relevância foi o Fórum Nacional, criado por João Paulo em 1988. Assim como o Ipea, o Fórum sempre combinou pluralismo de ideias com rigor técnico. A divergência sempre foi bem-vinda, mas era preciso que estivesse fundamentada em argumentos sólidos e evidência empírica.
Sua concepção de planejamento como uma visão estratégica que evolui ao longo do tempo esteve sempre presente nas três décadas do Fórum Nacional. A partir do Plano Real, temas como a estabilidade macroeconômica de curto prazo foram perdendo importância relativa e novos temas foram surgindo, como economia do conhecimento, meio ambiente, inclusão econômica e social de favelas, e inúmeros outros.
Desde 2017, meu tio Raul Velloso assumiu a organização do Fórum, com minha colaboração. Infelizmente, temas que pareciam superados, como equilíbrio fiscal e sustentabilidade da dívida pública, voltaram à ordem do dia e à programação do Fórum.
Em 2013, Rubens Cysne e eu organizamos um seminário na FGV para celebrar o longo período de magistério de João Paulo na EPGE, como titular da cadeira de Economia Brasileira. Ao aceitar a homenagem, da qual participaram alunos, ex-alunos, dirigentes da FGV e especialistas, João Paulo pediu apenas que, ao invés de um evento centrado em sua pessoa e carreira, o seminário tivesse como objetivo debater temas relacionados ao desenvolvimento do país. O título, de sua escolha, refletiu essa ideia: O Brasil de amanhã. João Paulo tinha inúmeros interesses além de economia, como cinema (sua grande paixão), teatro, música clássica e religião. Em todos, teve participação ativa, tendo estabelecido relações de amizade com cineastas brasileiros e atuado de forma incansável em defesa da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Vou guardar com afeto a lembrança do nosso último encontro, no início de fevereiro. João Paulo fará uma falta imensa à família, aos amigos e ao país.
Fonte: Blog do Ibre/FGV