RIO – O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta terça-feira que o país está “quebrado” e que ele não consegue “fazer nada”. Bolsonaro citou a alteração da tabela do Imposto de Renda (IR) como uma de suas promessas que não consegue cumprir, mas não é difícil lembrar outras.
Eleito com um programa econômico liberal e reformista, Bolsonaro não conseguiu aprovar reformas estruturais para além das mudanças nas regras de aposentadoria, em 2019. Rusgas entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) não contribuíram.
O presidente também tem tido dificuldades para fazer privatizações e controlar as contas públicas, cujo déficit foi agravado pelos gastos para o combate à pandemia, que já matou mais de 196 mil pessoas no Brasil.
Faltam recursos para investir em obras públicas, outro plano que enfrenta limitações para sair do papel. Empresários e investidores cobram uma agenda clara do governo sobre sua estratégia para recuperar a economia em 2021.
O GLOBO ouviu economistas sobre as declarações do presidente nesta terça-feira. O Brasil está mesmo quebrado? O que falta ao presidente? Confira as análises a seguir:
“Quem se candidata à Presidência tem que estar preparado para os ‘azares da vida” – Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda
Não dá para dizer que o Brasil está quebrado. O país vive uma situação de crise fiscal grave, que pode levar à insustentabilidade da dívida pública. Mas está longe de estar quebrado.
Cabe ao governo, que conhece a situação mais do que ninguém, conseguir do Congresso as reformas necessárias capazes de tirar o país dessa situação. O Brasil, hoje, tem uma situação confortável nas contas externas, que, no passado, já foram foco de crise e instabilidade.
Não há registro na história recente de um país ter quebrado em relação a seus compromissos domésticos, com as contas internas. Quem se candidata à Presidência da República tem que entender o ambiente em que vai atuar e estar preparado para os “azares da vida”.
O presidente Bolsonaro teve o azar de estar no poder durante uma das piores crise sanitárias da história. Sua atitude não deveria ser reclamar, pois isso pode piorar a situação. Imagine os credores internacionais do país ouvindo do presidente que o país está quebrado.
É uma reação emocional do presidente, que acaba sendo prejudicial ao país. Todos os governos enfretam problemas para tocar sua agenda. O governo Bolsonaro não é o primeiro e nem será o último a ter problemas.
O papel do governo não é externar suas insatisfações em relação ao Congresso, mas articular e formar uma base parlamentar para ter suas propostas aprovadas.
Bolsonaro escolheu ser um presidente minoritário num sistema parlamentar fragmentado, por isso tem mais dificuldades em governar. Portanto, ele tem que trabalhar para formar sua base parlamentar estável e criar mecanismos de articulação com o Congresso.
“Bolsonaro cria uma culpa meio genérica no passado” – Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações
O Brasil não está quebrado, tem dificuldades grandes, porque não consegue crescer e não tem poupança interna, e ficamos nesse crescimento entre 2,5% e 3%, que é nossa taxa histórica.
Pelos números recentes, a dívida pública não vai passar de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), e o Banco Mundial está prevendo queda de 4% (do PIB) em 2020. No México, vai cair 9%.
O nosso presidente se acha mais malandro que todo mundo. Não posso dar dinheiro social, porque meus antecessores quebraram o país.
Desemprego: Para Bolsonaro, parte dos brasileiros ‘não está preparada para fazer quase nada’
Nós estamos numa situação muito melhor que já tivemos no passado, mas ainda com dificuldade de equilibrar o Orçamento e administrar a dívida pública.
O objetivo parece que eleitoral. Em 2022, ele vai dizer que arrumou a situação fiscal e pode voltar com os benefícios sociais no ano seguinte. Ele meio que cria uma culpa meio genérica no passado. Sempre conseguimos sair disso e vamos sair disso agora também.
O déficit nas contas públicas já diminuiu muito. Em novembro já chegamos na mesma situação de deficit primário que novembro do ano passado.
Houve uma barriga, que foi financiada com recursos da dívida, e a economia voltou a crescer, 3%, 3,5% e voltou a ter arrecadação. Se melhorar um pouco, acalma mercado.
“Nessa hora, o mandatário tem de fazer escolhas” – Ana Carla Abrão, ex-secretária de Fazenda de Goiás e diretora do escritório da Oliver Wyman no Brasil
O presidente não pode fazer essa declaração sem se sentir minimamente responsável. Está na cadeira há dois anos e tem os instrumentos para evitar que essa situação se realize de fato.
Não estamos quebrados, mas a situação fiscal é frágil. Falta ao presidente que assuma o papel de articulador, patrocinador das propostas que podem evitar essa situação de quebradeira.
Temos a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial, dos Fundos, do Pacto Federativo, as reformas tributária e administrativa (à qual o presidente foi o primeiro a ser contra) tem as privatizações. E o presidente veio a São Paulo, na Ceagesp, e fez declarações contrárias à privatização.
Se chegarmos a essa situação de quebradeira, o primeiro responsável é próprio presidente, não a mídia, não o Congresso ou os governadores, que ele busca culpar pelas mazelas do país.
Por outro lado, talvez o presidente, dando-se conta dessa situação, passe a agir para evitá-la. Talvez, finalmente, tenha caído a ficha do presidente.
Fui secretária de Fazenda de Goiás durante dois anos de penúria. Nessa hora, o mandatário tem de fazer escolhas em prol de quem mais precisa. Fazer gestão pública na abundância é fácil, mas essa situação não existe no Brasil há muito tempo.
O presidente assumiu o país, sabendo da fragilidade fiscal, da escassez de recursos. Fez escolhas. Não cortou subsídios, não quis a reforma administrativa, porque é corporativista.
Ele aumenta recursos para Defesa, para área de militar, não há dinheiro para tudo. Sempre faz escolhas que não cuidam da população e, sim, tratam de interesses específicos.
“O irreal é achar que simplesmente não existe limite” – Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV
Felizmente, não, o Brasil não está quebrado. O presidente disse que está sem recursos para aumentar a isenção do Imposto de Renda, mas vimos o dinheiro indo a para estatal da Marinha e para outras coisas.
O dinheiro não dá para chegar no lugar da fila de prioridades na qual o presidente colocou a isenção do IR. Outras prioridades foram escolhidas pelo presidente.
Houve investimentos em Defesa, acabou de criar uma estatal (NAV Brasil, de navegação aérea), retroagiu na privatização da Ceagesp (entreposto de alimentos de São Paulo), tem défícit e consome recursos do governo. Ele abriu mão de usar o dinheiro no IR para cobrir o prejuízo.
É uma questão de prioridade. O problema é o tamanho das despesas, não como você aloca os recursos.
O presidente optou por mandar R$ 6 bilhões para estatal que trabalha num submarino. Isso elimina espaço para fazer a isenção de IR. Há uma série de propostas de emenda no Congresso que abririam espaços para o auxílio emergencial.
A sociedade em geral, e o governo em particular, tem de discutir as prioridades. O irreal é achar que simplesmente não existe limite. Isso não é realista.
“Guedes ficou sozinho, com muito ministro pedindo mais gasto público” – Margarida Gutierrez, professora da Coppead/UFRJ
O Brasil tem dificuldades gravíssimas desde 2016. Se olharmos as contas públicas, é um desastre.
No Orçamento, 94% da despesa são obrigatórias, 73% são gastos obrigatórios indexados, não tem manejo de política fiscal. O Congresso só vota 6% do Orçamento.
Temos uma trajetória de dívida pública que é a maior dos emergentes, carga tributária digna de país rico, renúncias fiscais de todos os lados. São R$ 400 bilhões em isenções.
Os outros 30% vão para saúde, investimento, educação, custeio da máquina. De qualquer lado dessa história, os dados são horríveis: são 70% do Orçamento em somente três itens: Previdência, pessoal e BPC.
Já fizemos a reforma da Previdência e só falta mexer no gasto com pessoal. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ficou sozinho nessa defesa, com muito ministro pedindo mais gasto.
Além disso, teve o desgaste de Bolsonaro com o Congresso, que não dava espaço para negociar as medidas para mexer com o gasto obrigatório. PECs (propostas de emenda à Constituição) foram apresentadas no fim de 2019 e nada foi votado. Estamos assim desde 2016, mas só fizemos a reforma da Previdência.
“O fato é que temos uma dívida difícil de pagar” – José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos
Tecnicamente o conceito de “país quebrado” é muito complexo. Acho que o presidente usou de retórica para alertar que o país não vai conseguir aumentar os gastos públicos porque senão pode ficar insolvente.
Acredito que o discurso dele tem mais esse sentido. O fato é que temos uma dívida difícil de pagar. O Brasil encerra o ano com uma dívida equivalente a 90% do Produto Interno Bruto (PIB), o que é um nível bastante elevado para uma nação emergente. Portanto é uma situação delicada.
Mas obedecer o teto de gastos é fundamental para fugir da insolvência. E o governo precisa aprovar as reformas que já estão no Congresso (PEC Emergencial, Pacto Federativo) para fazer com que o país saia dessa trajetória de insolvência.
“O caminho está dado: é preciso fazer o ajuste pelo lado dos gastos” – Silvio Campos Neto, sócio da consultoria Tendências
É preciso separar as figuras de linguagem e evitar os exageros. Talvez essa declaração não tenha sido pertinente.
Um país quebrado não tem capacidade de honrar seus compromissos em moeda forte (dólares) e em moeda doméstica. E isso não está acontecendo com o Brasil. Há financiamento para cobrir o déficit interno.
A situação fiscal do país, e isso não é de hoje, é ruim. E a pandemia agravou esse quadro. A expectativa era de um déficit primário de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) e agora esse déficit está perto de 10% do PIB.
Esse é o efeito da pandemia nas contas públicas. E isso impede que o governo mexa na tabela de IR agora, mas, mesmo sem a pandemia, já não era possível mexer. Não havia espaço para um alívio tributário.
O país precisa, no mínimo, manter a carga tributária. Mas o caminho está dado: é preciso fazer o ajuste pelo lado dos gastos.
Na Previdência, isso foi feito no governo Bolsonaro. Todo mundo sabe o que fazer, mas são decisões difíceis. O Brasil postergou, mas chegou a hora de atacar certas despesas que são alvo de pressão.
É preciso avançar na PEC Emergencial, que aciona gatilhos nas despesas obrigatórias, dando sobrevida ao teto de gastos. A manutenção do teto é a sinalização ao mercado de que o governo vai colocar o país nos trilhos.
A bola está com o governo e com o Congresso, mas a coordenação desse esforço é do Executivo.
Fonte: “O Globo”, 05/01/2021
Foto: Sérgio Lima