O mote da campanha de José Serra – “O Brasil pode mais” – tem suscitado reações intensas. Contrastam com a carência de análises coerentes de seu discurso, feito na mesma ocasião, quando do lançamento de sua candidatura à Presidência pelo PSDB. O contraste é compreensível. É mais fácil se posicionar ante um mote de apelo eleitoral, necessariamente abstrato, contra ou a favor do qual cada um mobiliza as suas próprias razões, valores e emoções. Mas há algo mais.
Começo por uma constatação. Os comentários sobre o discurso de Serra se agrupam em duas vertentes. Por um lado, a crítica, explícita ou velada, da posta ausência de propostas substantivas, que alguns estendem também ao discurso de lançamento da ministra Dilma Rousseff. Por outro, a ênfase nos pontos de convergência entre ambos, com destaque para a “política industrial”, para uma suposta “inspiração cepalina”, para o “desenvolvimentismo”. Comum a ambas as vertentes é uma atitude até há pouco frequente entre os analistas de mercado, financeiro ou eleitoral. Tem que ver com as incertezas de um quadro sem precedentes, não só pela ausência de Lula como candidato, mas também porque o risco eleitoral é comparativamente baixo, e com a relativa continuidade da política econômica. Nesse quadro, é racional assinalar as convergências, mesmo ao preço de diluir as diferenças.
Além disso, há a força do hábito. O foco no ativismo de Estado como inseparável do bom desempenho da economia e da justiça distributiva sempre frequentou nossas disputas. políticas. O que intriga é que essa equação seja retirada do fundo do baú e exposta tal qual alheia às mudanças na geografia política e econômica internacional e às novas formas de inserção do País nesse novo cenário – que inclui também novas responsabilidades políticas.
O discurso de Serra rompeu com essa e outras formas de habitualidade e desarranjou o cenário intelectual esperado, lá, cá e acolá. Obriga a uns e outros a fazer vários ajustamentos. Uma razão é que não se presta a carimbos, ao contrário, obriga à reflexão e convida ao debate. Por isso desconcerta as mentes e os corações habituados aos rótulos, como substitutos da análise. Embora indispensáveis em todo tipo de marketing, não há como negar o peso da habitualidade: os carimbos foram erigidos no recurso retórico mais elevado da disputa política, com funções de poderoso anestésico intelectual.
Outra razão, substantiva, é que o discurso do pré-candidato representa um ponto de inflexão pertinente. É acessível, despojado da retórica técnico-econômica a que fomos habituados quando se trata de legitimar uma filosofia de governo. Ao mesmo tempo, tem apelo programático, porque ancorado num sistema de valores que serve de eixo a uma visão abrangente e de longo prazo de nossa democracia: como um processo de construção social – sem dono, portanto, mas sob a batuta dos líderes citados desde Tancredo Neves, com destaque para FHC. Discorde-se ou não dessa narrativa, ela aponta para uma dupla mudança histórica: no estilo de fazer política de oposição e como correção de rumos nos padrões de concorrência eleitoral.
Mas em que sentidos o Brasil pode mais? Há vários, e aqui apenas um deles será abordado. Antes, porém, é bom reconhecer que a resposta não se esgota na cobrança de um programa aos pré-candidatos e aos partidos. Faz- se necessário um mapeamento dos avanços e desafios, concebido como atividade cívica, ou seja, como construção de uma agenda pública, envolvendo analistas, consultores, acadêmicos e lideranças do terceiro setor, com capacidade propositiva em suas respectivas áreas.
Nessa linha, vale a pena retomar a noção de Estado em outro registro, para além de seu papel como agente de transformação econômica e como protagonista-mor de justiça distributiva. É o registro do Estado como poder público, cuja forma mais alta é o Estado como Lei, portanto inseparável do constitucionalismo liberal. É aquele que melhor evidencia a vocação democrática de um país. É nessa dimensão que se situam as conquistas que nos distinguem de uma parte da América Latina e para as quais o presidente Lula deu sua contribuição, mas entre outros. É dessa perspectiva, também, que melhor se observam os focos da tentação autoritária, típicos da cultura política da região.
Três tendências características nos assombram, em contraste com os regimes democráticos plenamente institucionalizados. Nestes, os conflitos se encerram com as decisões das cortes mais altas, aceitas como finais pelos interesses contrariados, porque introjetaram os procedimentos preestabelecidos como um valor, ou seja, como um princípio, e se ajustam a essa lei, internalizada. Na trajetória dos países onde prevalece a tentação autoritária, ao contrário, os perdedores se empenham em rediscutir, a cada vez, os fundamentos da Lei, e a redefini-la. Por outro lado, em sua forma mais extrema, os vencedores se empenham em reconstitucionalizar o país, da perspectiva dos seus interesses. Daí a instabilidade intrínseca desses regimes e também o segundo movimento. A possibilidade de exercer influência efetiva fora dos canais processuais estabelecidos permite que o espaço e as arenas decisórias em que se dá a formação das políticas públicas sejam recria dos a cada oportunidade, a cada decisão. A eficácia do processo decisório e a continuidade das políticas públicas ficam comprometidas e afetam a “capacidade de gestão”. A terceira característica é a resistência dos próprios governantes em fazer valer a Lei, quando contraria seus objetivos políticos. Se isso ocorre, veem-se obrigados a justificar suas ações em termos de suas conseqüências políticas (supostamente benignas) e abdicam da condição de autoridade constituída. O que abre espaço para um novo ciclo do “Estado politizado” típico da América Latina.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 30/04/10
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É, a direita não tem jeito mesmo, até nunca mais!!!!