Pelo que disseram os candidatos em suas campanhas, o resultado da eleição presidencial não trouxe novidades. Mostrou a crise da democracia representativa, que não atende aos valores e às aspirações dos eleitores. Revelou que as paixões políticas cederam vez ao maniqueísmo, ao desconcerto e à perplexidade. Sinalizou que a radicalização dos extremos só foi possível por causa da decomposição das bases de centro-esquerda e centro-direita. E deixou claro que, num contexto de fragmentação partidária, que marca um ponto de inflexão na crise de legitimidade das instituições, o desafio é refletir sobre a política e suas possibilidades e seus limites.
Mas em que medida a insatisfação generalizada pode produzir transformações democráticas, a começar pela reconstrução do sentido de responsabilidade, pela recuperação da noção de estratégia e pela formulação de um projeto de nação? Teria sido possível evitar que o segundo turno se resumisse à alternativa entre ceticismo e melancolia, cinismo e pragmatismo?
A votação obtida pelo candidato da direita, cujo discurso se resumiu à promessa de ordem e à manifestação do desejo de que o país de hoje volte a ser o de 40 anos atrás, apontou a disseminação, num segmento expressivo do eleitorado, da ideia de que a política é corrupta e dispensável. Nesse sentido, basta ver o que têm afirmado os parlamentares eleitos por esse eleitorado. O problema, contudo, é outro. Até que ponto uma postura antipolítica é melhor do que uma má política? Desqualificar a política não é também um modo de renunciar à representação de interesses e às aspirações de igualdade, inclusão e justiça?
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Na perspectiva realista dessas indagações, lembro o ano de 1999, quando, ao assumir seu segundo mandato, Fernando Henrique enfrentou uma crise cambial e foi objeto de pedido de impeachment apresentado pelo PT. Para rechaçá-lo o presidente loteou postos típicos da burocracia estatal entre partidos sem credibilidade moral. A estratégia deu certo, mas irritou parte da comunidade uspiana, a ponto de um professor emérito, próximo do PT, tê-lo acusado de “ser uma personalidade insensível às misérias da condição humana”. Em 2002, eleito pelo partido que formulara o pedido de impeachment, Lula foi denunciado no caso do mensalão e também loteou o Ministério para não cair. Nas duas ocasiões, as justificativas de membros da comunidade acadêmica próximos ao PT e ao PSDB foram iguais. Não se faz política se não se puser a mão na massa fecal em que se converteu o presidencialismo de coalizão, disseram os primeiros. Entre os segundos, outro docente emérito da USP afirmou que, apesar da politicagem escrachada matar a política, não se faz política sem dissimulação, troca de favores e indulgências. Por razões históricas, afirmou, no Brasil a política obedece a três premissas: o exercício do poder confunde-se com a gestão de recursos escassos, essa gestão invariavelmente cruza a zona cinzenta da amoralidade e como a política é competição é preciso que os políticos e governantes criem espaços de tolerância para certas faltas, sem os quais é impossível governar (Cf. J. A. Giannoti, Estadão, 19/6/2005).
Não é o caso de retomar os clássicos do pensamento social brasileiro para discutir a moralidade pública e as implicações éticas do presidencialismo de coalizão. É, sim, o caso de rever expectativas com relação à política, para saber se ela é ou não prescindível e examinar se não esperamos dela o que não pode proporcionar numa sociedade como a nossa. É preciso entender a dinâmica da política, para julgá-la no âmbito de um regime democrático. A democracia é um modelo político em que os fins em confronto são múltiplos e muitas vezes colidentes, dada a diversidade de atores econômicos e sociais.
As democracias consolidadas são um sistema cujas instituições e regras constituem uma urdidura capaz de absorver insegurança e garantir estabilidade. Mas por se mover no terreno pantanoso da instabilidade e do desequilíbrio, esse sistema é vulnerável ao questionamento de valores, à intolerância e à indeterminação das identidades políticas. Por isso a efetividade da democracia está condicionada à sua capacidade de aprender a lidar com contingências, desenvolver sistemas de prevenção e gerir conflitos decorrentes do aumento da complexidade socioeconômica. Para tanto, contudo, são necessárias lideranças políticas que a democracia, paradoxalmente, não tem formado.
A crise de moralidade pública é um dos sintomas da patologia da política brasileira, tendo sido decisiva no resultado do pleito. Mas para enfrentar essa crise é necessário afastar esse paradoxo, criando as condições para que a dinâmica democrática abra caminho para lideranças novas, comprometidas com as liberdades públicas, e não para um populista incapaz de entender que governar não é bater na mesa, fazer ameaças ou citar a Bíblia, mas articular apoios, formular políticas públicas e implementar programas. Assim, o que se tem hoje é um cenário de intolerância e mediocridade, de uma crise potencial de governabilidade e de risco de ameaças aos marcos constitucionais, resultante da simbiose entre a fragmentação do sistema partidário, o oportunismo de suas lideranças, a debilidade dos mecanismos de mediação, o negativismo dos eleitores e a opção dos candidatos que disputaram o segundo turno por se desqualificarem reciprocamente, vendo-se não como adversários, mas como inimigos, recusando-se a aceitar que o outro faz parte de sua sociabilidade.
Como essa simbiose tende a sobrecarregar a capacidade adaptativa dos sistemas governamentais e a agravar a desagregação da sociedade, no cenário pós-eleição ainda não dá para saber se o que nos espera é a “floração do esteio” ou, o que é mais provável, “uma noite polar, glacial, sombria e rude”, como disse Max Weber em célebre conferência.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 20/11/2018