Como os carros, os sapatos e os cachorros, países também podem ter donos. As antigas aristocracias, feitas de reis, rainhas, papas, príncipes encantados, bispos e barões – esses aparentados dos deuses cujo sangue deveria ser azul -, eram donas de seus países. Quando um rei era bom, tudo ia bem; quando era mau, esperava-se sua morte. Tudo estava plenamente estabelecido e era impossível trocar de lugar. Você não virava rei, você nascia e morria nobre, lacaio ou escravo; e, se fosse muito azarado, negro.
O regime aristocrático foi rompido, na Inglaterra, pelo republicanismo da Revolução Gloriosa (em 1688) e, com muito mais radicalismo, pela Francesa (em 1789). Mas um outro tipo de governo restritivo da liberdade e de igualdade foi estabelecido na era moderna pelos nazifascismos de Franco, Salazar, Mussolini e Hitler, a oeste; e pelo coletivismo comunista de Lênin e Stálin, a leste. Depois de 1945, o comunismo foi dono de China e Coreia do Norte, onde continua mandando até hoje. A partir do início de 1960, fidelizou Cuba. No comunismo, o domínio não era mais exercido por dinastias ou casas, como acontecia nas antigas aristocracias, mas por um partido político com sua implacável lógica de decidir em assembleias algo que já estava resolvido por seu micro comité central- que, como estamos testemunhando no caso chinês, pode incluir famílias e amigos.
O antídoto contra esse tipo de mandonismo tem sido, como ensina pioneiramente Alexis de Tocqueville em seu clássico “A democracia na América”, aquilo que mais o espantou quando ele, em 1831, chegou aos Estados Unidos: a igualdade de condições de seus habitantes. Nesse caso, o país não é propriedade de nenhuma classe, família, pessoa ou partido, mas de seus cidadãos, que se ordenam por meio da liberdade e da igualdade. A liberdade inventa o jornal e a opinião pública. A igualdade reinventa uma justiça voltada para todos.
Se fizermos um inquérito, meu palpite é que uma grande maioria dirá, sem hesitações, que o Brasil tem dono. Seu dono é o governo. O governo de Fulano ou Sicrano, pois todo mundo sabe que é o governo quem – como um patrão ou dono – manda, ordena, decide, faz, dá, vende, desmancha, desperdiça ou destrói. Se o mundo é uma bola, como diz o ditado, essa bola tem dono. Temos dificuldade de lidar com aquilo que, sendo público, é de todos.
O Brasil sempre se viu como possuído por alguém de um modo pessoal, e até mesmo apaixonado e amoroso. JK amou o Brasil como um homem ama uma mulher. Jânio Quadros o renegou, divorciando-se dele sem motivos. A ditadura personalista de Vargas é vista como um longo casamento, como foi o de Dom Pedro II, nosso último Imperador. Mesmo na ditadura militar e no mais recente péríodo democrático, alguns presidentes são vistos como mais ou menos apaixonados e donos do país.
Talvez essas entregas sejam resultado inconsciente do abandono que o Brasil sofreu após sua “descoberta”, em 1500. Um abandono de quase 100 anos, só retomado depois de ter sido quase perdido pelos namoros um tanto violentos – há quem fale em estupro ou violação – com os holandeses, em Pernambuco, e os franceses, que conquistaram O Rio de Janeiro sem romantismo nem etiqueta. Finalmente assumido por Portugal, o Brasil teve seus primeiros patrões na forma de uma alta centralização personificada nos governadores gerais.
Nosso momento mais glorioso e feliz ocorreu em 1808, quando a Família Real e a Corte vieram para o Brasil. Tínhamos agora um Rei que dava, em pessoa, as bênçãos e a mão delicada e branca para os beijinhos e as genuflexões de puxa-saquismo que tanto apreciamos. Ríamos quando ele ria. Ficávamos tristes quando ele chorava. Latíamos e rosnávamos quando ele ficava enfezado. Uivávamos quando ele ficava deprimido ou sofria de acessos de fúria. O dono do Brasil era um ser humano como outro qualquer – mas, por ter um lado Divino, era o dono sacrossanto do Brasil. Como o Brasil é abençoado por Deus e Deus é brasileiro, esse patrão era a fonte de todo bem. Pois para nós, brasileiros, o Rei, o Dono e o Patrão – o Cara – não têm culpa de nada e sempre desejam nosso bem-estar. De tal modo que, quando algo mau acontece, não é sua culpa. Pois é inconcebível que ele, em sua bondade ou com sua imensa vontade de cuidar do Brasil, possa ter culpa ou responsabilidade por alguma falcatrua ou malandragem. O mandão, por pior e mais demagógico que possa ser, é, por definição, um inocente de tudo o que ocorre a seu redor. Ele é dono do mundo, mas nada tem a ver com o que dá errado nele.
Aos poucos, um modelo de democracia baseado na competição eleitoral e na opinião se estabeleceu entre nós. Aos poucos, ficamos intolerantes com partidos políticos donos da verdade que seriam, por tabela, donos do Brasil. Nossa intolerância se estende a ministros e políticos que compravam seus pares com o objetivo de permanecer para sempre no poder. Hoje, está mais claro que todos devem se submeter à lei e que não se pode mais usar a desculpa da ficção biográfica para justificar crimes cometidos contra as instituições republicanas que são de todos. Na economia, a era FHC fixou um padrão, com o Plano Real, e o STF julgou o mensalão debaixo do crivo impecável dessa igualdade.
O resultado é que a pergunta “O Brasil tem dono?” pode ter muitas respostas. Sim, seu dono é o governo. Sim, seu dono é o grande capitalismo global. Sim, seu dono é o agronegócio. Sim, seu dono é o partido do governo. Mas o Brasil é também seu e meu, leitor. Ele é também do povo, esse novo patrão que veio para ficar.
Fonte: revista “Época”
Texto irretocável!
Em termos gerais, essa é a síntese do neo-populismo.
Para a massa menos instruída, é uma redundância do processo. É bom ter um dono, como é bom ter um pai. Para a consciência histórica, é um peso morto sobre a democracia.
Não sabemos até onde isso vai dar.
No Equador o presidente aumentou os salários a 2 meses da sua reeleição. Para o sistema vigente, é algo inteiramente normal, aceitável, parte do processo.
Mas não é.
É uso do poder público para benefício privado, individual. Pior que isso, usando a riqueza de terceiros.