Padre Américo Sérgio Maia, antigo vigário de Çajazeiras (PB), teve um dia de viajar 28 quilômetros a cavalo para dar a extrema-unção a um doente. Cansado, apeando do animal logo perguntou: “Minha senhora, por que vocês não fizeram uma casa mais perto da cidade?”. Ouviu a ácida resposta: “Padre, e por que não fizeram a cidade mais perto da gente?”. Essa historinha serve para explicar o distanciamento de fiéis da Igreja Católica e sua perda para credos evangélicos, se bem que, em sua entrevista ao jornalista Gerson Camarotti, o papa Francisco tenha ressaltado o fato de não conhecer profundamente a questão brasileira. Mas a distância entre a população católica e sua Igreja se insere entre as razões que estão por trás da perda de 1,7 milhão de fiéis entre 2000 e 2010, segundo dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que dá uma média de 465 pessoas por dia.
A lição do papa cai como luva para explicar também a perda de credibilidade dos políticos. A crise da nossa democracia representativa, tão ressaltada nestes tempos de efervescência social, se ampara em múltiplas razões, mas o descolamento entre a esfera política e a sociedade apresenta-se como o fator central Políticos fecham os ouvidos ao barulho das ruas e menosprezam o sentimento da plebe.
E qual o motivo para tal afastamento, quando se sabe que o mandato não pertence ao eleito, mas ao povo, que apenas lhe transfere temporariamente a representação? A resposta contempla a mudança do conceito de política, de missão para profissão, aquela abrigando o ideário coletivo, esta incorporando o interesse individual. Ou, em outros termos, o verbo transitivo indireto servir (ao povo) cedeu lugar à forma pronominal servir-se (do povo). A esganiçada luta do poder pelo poder tornou mais ferina a competição política, formando um arsenal de poderosos instrumentos para os guerreiros usarem na arena eleitoral: recursos financeiros, espaços midiáticos, partidos sem doutrina e uma retórica de glorificação personalista, focada na grandeza dos perfis em detrimento das ideias. Há muito deixamos de enxergar na representação política o conjunto que deveria agir em defesa de uma sociedade harmônica e fraterna, banhada nas águas da solidariedade. Os conjuntos legislativos são vistos como braços políticos do ciclo produção-consumo, cujo foco é o rendimento, o ganho, a concorrência, o jogo de soma zero, no qual a vitória de um se dá graças à derrota de outro.
Sob esse prisma, o rosário de virtudes desfiado pelo jesuíta argentino para revitalizar a Igreja Católica e resgatar a fé de rebanhos desgarrados não deixa de ser sábia contribuição para oxigenar a política. Afinal, partidos políticos,como credos e igrejas, mesmo sob o impulso da força monetária, devem ser entidades inspiradas no poder da norma, conforme ensina Amitai Etzioni em sua obra sobre organizações complexas. A evidência transpareceu. O pontífice usou as chaves da Igreja de Roma para abrir, por aqui, outras portas, ainda mais que se deparou com uma orla marítima povoada por 3 milhões de pessoas, um ambiente político tumultuado, a começar de um Rio de Janeiro hostil aos governantes, e ecos deturbas clamando por melhoria dos serviços públicos. O papa parecia querer nos deixar um legado valorativo, algo como um manual de conduta política, tão franciscano quanto ele, contraponto ao Breviário dos Políticos, aquele manuscrito que o cardeal Mazarino produziu nos tempos dos Luíses XIII e XIV da França, pregando a desconfiança, a emboscada, a simulação e a dissimulação.
O livrinho papal, pinçado de seus pronunciamentos e entrevistas, alinha preceitos inerentes ao escopo da Política (com P maiúsculo), seja para uso da Igreja, seja para a vida partidária. A par da proximidade, fator já referido, apregoa a simplicidade, o despojamento da estética extravagante, tão do gosto desse marketing que espetaculariza eventos e cosmetiza imagens de governantes. (Quem imaginaria uma de nossas altas autoridades subindo a escada do avião com sua malinha a tiracolo?) Simplicidade nada mais é que a presença do político real junto ao eleitor, sem estandartes e altares para poder se apresentar mais alto ou mais importante do que é. Ser simples é exibir o perfil desnudado, sem máscaras, despojado, leve, transparente. Nas palavras de André Comte-Sponville, “é ter a virtude dos sábios e a sabedoria dos santos”. Ou, ainda, ter humildade, que “é a virtude do homem que sabe não ser Deus”. Exercitar tais virtudes significa ter coragem para se desviar do espelho de Narciso, ao qual recorrem, invariavelmente, os atores políticos. O termo ator, aqui, tem o propósito de mostrar que a “cultura do espetáculo” chegou ao palco da política, que esta é cada vez mais parecida com a arte dramática, na expressão de Roger-Gérard Schwartzenberg: “Esta política-artificio vive de insinceridade, de sentimentos falsos, forçados ou fabricados”.
A coleção de valores abriga, ainda, o compromisso da “nossa geração” de abrir espaço aos jovens, que Francisco conclamou a serem “revolucionários, rebeldes, corajosos”. O que os partidos políticos e os dirigentes têm feito para cooptar a adesão da juventude? Que esforços têm feito para compreender suas demandas, falara sua linguagem, ir ao encontro deles (sem jaulas de vidro)? Que janelas as siglas devem abrir para caírem no gosto popular? Encher papéis com verbos cheios de promessas, fazer novas cartas aos brasileiros? Mais uma vez, a voz do papa se faz ouvir; urge acabar com a Igreja que se comunica por documentos, à semelhança da mãe que se comunica com o filho por carta. O mesmo vale para a política. No entanto, partidos acreditam que acervos documentais farão o milagre de multiplicação de adeptos. Guinadas à esquerda, à direita ou ao centro não funcionam mais como anzóis para todos, igrejas e partidos que saibam ouvir suas preces.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 04/08/2013
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