Não fiz o caminho de Santiago, mas andei por Santiago – e esbugalhei os olhos com o que vi no Chile. De cara, um aeroporto amplo e moderno, com muitas atrações. Todo mundo sabe que, hoje em dia, aeroportos estão mais para shoppings do que para rodoviárias de terceira classe, como ocorre no Brasil. Em seguida, fiquei impressionado com o trânsito, e o modo como os chilenos constroem seu espaço público. Assombrado, compartilhei calçadas, ruas e elevadores com chilenos que respeitavam o próximo. Embora estivesse hospedado num hotel em Las Condes – uma espécie de Wall Street chilena, mas sem movimento de “ocupação” –, nenhum conde, duque ou barão caminhou incólume na minha direção, forçando-me a dar passagem, como é comum no Brasil. Pelo contrário, assisti um tanto invejoso à norma da igualdade para todos quando o bom-senso (que timidamente chamamos de “educação”) negocia dar ou receber a vez; seja para cruzar as ruas, seja para andar nas calçadas. Isso faz com que faixas e sinais funcionem. Como resultado, o povo não corre e há um sentimento de tranquilidade geral, porque a “rua”, tão preocupante neste nosso Brasil, deixa de ser um lugar de perigo para se tornar uma ponte para chegar ao trabalho ou voltar ao lar.
Nem vou falar da comida barata. Ainda na questão do comportamento, testemunhei o seguinte: num restaurante onde se comemorava um aniversário, o grupo festivo de dez ou 12 pessoas cantou apenas “parabéns pra você”. Não contaminou o ambiente com as festas brasileiras que, de acordo com a regra dos incomodados que se mudem, são rotina. Finalmente, com meu companheiro de trabalho, Eugenio Tironi, com quem troquei ideias sobre valores e práticas socioculturais sul-americanas, verifiquei que podíamos nos orgulhar de umas tantas coisas que faziam parte do nosso estilo de vida. A festa, a importância dos relacionamentos sociais, a comida compartilhada, a música como promovedora de congraçamento e a religião formavam um núcleo forte, que poderia facilitar a igualdade, ajudando a dirimir nosso aristocratismo, expresso em todo tipo de autoritarismo e, acima de tudo, no uso de dois pesos e duas medidas como forma de proteger aliados, de evitar a distinção entre o ético e o legal, de recusar, enfim, a politização (ou moralização) do espaço problemático situado entre o público e o íntimo, entre a casa e a rua. Algo que só pode ser feito por meio de sua calibragem ou da norma segundo a qual ocupantes de cargos públicos abrem mão de sua vida pessoal, pois são englobados ou “vestidos” pelos seus papéis de ministros, secretários, prefeitos, governadores, senadores, juízes, e assim por diante.
Pude ver o lado positivo do Chile e da América do Sul porque não fiz o ritual clássico de autoflagelação
Mas como foi possível ver o Chile positivamente? A resposta é complexa, embora seja singela. Fui capaz de ver o Chile e a América do Sul positivamente, porque pela primeira vez na minha vida não me reuni para realizar nossos ritos clássicos de autoflagelação em nome de uma “consciência crítica” nascida, entre outras coisas, de uma idealização dos Estados Unidos e da Europa. As crises financeiras que afetaram o ex-Primeiro Mundo são muito parecidas com a obesidade americana. A obesidade tem a ver com uma bolha de apetite, a financeira com uma gordura monetária.
Os colapsos do dinheiro levaram, da Europa e dos Estados Unidos, o modelo ideal que seria a medida universal das nações de modo que, de certo ponto de vista, são essas crises do capitalismo, promovidas pelas malandragens dos capitalistas de Wall Street, que abrem um novo ciclo histórico. Pode chamá-lo de “era dos Brics” ou de “pós-pós-modernidade”. Mas tente fugir dos nomes e vá ao que você realmente quer dizer. Se você fizer isso, percorrerá o caminho de Santiago e porá, sob um holofote, nossas qualidades, em vez de reafirmar aquela ladainha decorrente do exame do Brasil por “default” – pelas ausências. Não tivemos burguesia industrial, não fomos colonizados pelos ingleses, tivemos escravidão, não inventamos – como os gregos! – a democracia, não seguimos as regras com a mesma fé dos alemães, não temos nada a ver com o calvinismo etc.
Entretanto, há toda uma nova literatura. Destaco o brilhante livro de Michael Lewis, Bumerangue: uma viagem pela economia do novo Terceiro Mundo (Editora Sextante, 2011), que nos faz ver o que pressentíamos: a morte dos modelos exclusivos e das fórmulas únicas. Um dos contrastes entre o nosso mundo e o universo euro-centrado dos nossos ancestrais é o esgotamento – pela globalização – entre infra e superestrutura. Entre o claro e o oculto, entre o homogêneo – idealizado como privilégio da Europa e dos Estados Unidos – e o heterogêneo – como um estigma nosso. Entre o puro – como sinônimo de estável que era deles – e o impuro ou o misturado – como um símbolo de desconcerto, de desequilíbrio e de malandragem que nos pertencia.
A crise do euro promovida, como diz Lewis, por um tsunami de crédito global abundante e fácil de pegar, mas usado ou aplicado de acordo com as normas locais (pois cada país gastou o que dispunha de modo diferente, levando a crises de dívidas públicas hoje insanáveis), liquida (sem trocadilho) as grandes teorias reducionistas sob as quais fomos todos norteados. Primeiro, porque o caso europeu mostra como nações “puras” e normativas, como Alemanha e França, embarcaram numa viagem desastrosa de financiamento a países míticos (como Islândia e Grécia), mas irresponsáveis.
Descobrir que na Grécia ninguém paga imposto e que o próprio governo mascarava suas estatísticas é descobrir que, afinal, o Brasil não é tão ruim quanto diz a cartilha tradicional. Aprender que o capitalismo pode ser desfeito pelo próprio capitalismo, e não pelos seus operários explorados por meio do estudo da crise irlandesa, é sair do esquema de que todo grande problema social só tem uma explicação (e solução). No caso irlandês, operários poloneses enricaram, compraram carros de luxo e, quando se viram insolventes, deixaram seus automóveis no aeroporto de Dublin… Ver a França endividada até o gargalo, ao lado da Califórnia de Arnold Schwarzenegger e da Islândia que passou de ilha de pescadores para uma Wall Street vulcânica, é ver que, por trás das fórmulas exclusivas e universais – raça, clima, geografia, industrialização, substituição de importações, capitalismo espoliador e o que mais se queira –, se esconde o inesperado dos modelos locais. A ousadia financeira da Islândia veio, aprendo com Lewis, da pesca do bacalhau em mares revoltos, uma atividade de risco e masculina; a bolha americana veio do sonho americano de viver em mansões que, quando veio o crédito fácil, levou à construção de casas enormes nas quais eles moram solitariamente; na Irlanda anglo-católica, a corrupção desenfreada chegou com uma pitada da possibilidade de confessar pecados.
Com as luzes apagadas e num “quarto escuro”, todos fizeram o que mais desejavam. Eis a fórmula com que Lewis traduz para um público leigo a ideia antropológica de cultura. O caráter precavido dos alemães tornou-os hiperdoadores. Sua conhecida “analidade” fez com que espalhassem m… para todo lado, mantendo-se limpos. Lewis elabora esse ponto, mas não chega a dizer claramente aquela verdade que todo brasileiro sabe e que aprendi com minha avó: que m… e dinheiro são a mesma coisa!
Diante de tudo isso, Brasil e Chile parecem Suíças sem “suicidades”, como gostava de dizer o saudoso Darcy Ribeiro. Eis que, diante de todo esse desastre dos “adiantados” e “civilizados”, descobrimos que não somos perfeitos, mas – eis o ponto do caminho de Santiago – não somos irreparáveis nem casos perdidos. Diante de um país como o Chile, que se democratizou depois de uma brutal ditadura, e de um Brasil, que se curou de uma inflação abissal e destrutiva, a crise financeira mundial preocupa, mas nos faz ver quanto fizemos. Agora, cabe não nos perder no quarto escuro de nossa própria riqueza.
Fonte: Época, 26/12/2011
Roberto DaMatta, a clareza de suas ideias me dá otimismo. A sua presença, seja em entrevista ou nos seus textos, é marcante porque revela o seu espírito livre e amplo.
Obrigada!