Na literatura acadêmica, há uma linha de pesquisa que trata do chamado “capital cívico”. É o conjunto de características que fazem com que uma sociedade tenha na confiança um dos pilares do seu desenvolvimento. Usa-se muito, nesses estudos, o caso da Itália, onde as relações entre pessoas, grupos e instituições no Sul subdesenvolvido do país diferem muito das que se verificam no Norte, um espaço muito mais evoluído.
Quem visita o Japão ou a Escandinávia dificilmente deixa de concluir que são lugares que pertencem a uma espécie de “estágio superior” da civilização. Nessas sociedades, não apenas as pessoas confiam muito mais umas nas outras, como também há confiança no governo, de forma análoga à que existe numa família, no pressuposto de que esta se guia pela procura do bem comum.
No caso de um país, pense o leitor como agiria se fosse empresário num lugar como a Venezuela de hoje. É óbvio que, na enorme maioria dos casos, a única estratégia sensata nesse caso é, pura e simplesmente, sobreviver. Assumir o risco de recorrer a um banco, tomar um crédito e investir, nesse ambiente de cataclismo, é uma insensatez. A comparação com a situação de um país desenvolvido, onde há confiança e um bom ambiente de negócios, não poderia ser mais contrastante.
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O leitor deve estar se perguntando: “O que isso tem a ver com a gente?”. O ponto que quero destacar é que, no Brasil, vivemos há anos uma situação penosa em termos da confiabilidade em nossos homens públicos. É preciso, porém, que o país aprenda a diferenciar melhor o joio do trigo, porque certas generalizações podem estar contribuindo para minar as bases da democracia, ajudando a criar um ambiente no qual o cidadão comum entende que tudo conspira para prejudicá-lo.
Vou citar dois exemplos desse espírito preocupante que está sendo criado. O primeiro é a pregação, amplamente difundida no ambiente eleitoral de 2018, contra o “peso de Brasília” na vida do cidadão comum, através da cobrança de impostos. Ocorre que entre 2010 e 2018 a relação entre as despesas previdenciárias mais Loas e a receita líquida do governo federal passou de 49% para 63%, o que significa que sobram cada vez menos recursos para atender aos serviços que a população requer. E isso não guarda qualquer relação com aumento dos privilégios do funcionalismo, “excesso de Brasília” ou coisas do gênero — e sim com regras que permitem aposentadorias precoces de muita gente, desde aqueles que se aposentam no meio rural até quem o faz aos 51 anos por tempo de contribuição na cidade.
O outro é a manchete de um grande jornal: “Herança por três décadas: indenização da conta de luz pode ser paga por 30 anos”. Quem lê a manchete fica com a impressão de que há uma conta extra cobrada para “meter a mão” no bolso do brasileiro para beneficiar uma distribuidora, quando era exatamente o contrário: era uma diluição de uma conta, a ser originalmente quitada em alguns anos, por um período de três décadas.
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O país vive uma fase de descrença muito perigosa. Resgatar a confiança é chave. É importante olhar para a História. Quando se observam os dados da Argentina, fica difícil entender como é que ela saiu dos bons números da década de 60 para a tragédia dos anos 70. Em parte, isso foi porque o clima do dia a dia na gestão de Arturo Illia, que fez um governo correto, fez com que equivocadamente ele fosse retratado como algo caótico, o que compôs o pano de fundo para o golpe militar de Onganía em 1966. Aqui no Brasil, parte da opinião pública — ou publicada — tratou durante oito anos o período FHC —definitivamente, um ponto fora da curva em nossa História — como o de um governo corrupto. Retrospectivamente, o tratamento foi uma completa aberração. É preciso revalorizar a política. É uma reflexão que cabe a todos fazermos. Todos têm legitimidade para isso. A eleição foi há oito meses. Dialogar, praticar concessões, procurar consensos — em outras palavras, fazer política — é acumular capital cívico. É disso que se trata.
Fonte: “O Globo”, 04/06/2019