É irônico, dizia um amigo meu, que o maior pregador do Brasil contra o gigantismo do Estado tenha sido funcionário público a vida toda. Ainda assim, o diplomata, economista e político Roberto Campos, que hoje completaria cem anos, foi um incansável defensor das ideias liberais e pôde, ainda em vida, testemunhar a realização de sua maior profecia: o naufrágio do socialismo na União Soviética.
Ex-seminarista nascido em Cuiabá, Campos foi da primeira leva de concursados no Itamaraty, onde entrou em 1939. Num momento em que o fascismo e o nazismo atraíam parte não desprezível do governo e da intelectualidade, soube enxergar as ameaças do totalitarismo à direita e à esquerda. Sua formação econômica o mantinha distante das ideologias utópicas — embora não o tenha impedido de associar-se à ditadura.
Foi nos Estados Unidos, onde serviu entre 1942 e 1947, que se tornou o primeiro economista formado a atuar nos quadros da diplomacia brasileira. Sua tese de mestrado, na Universidade George Washington, recebeu elogios daquele que era então um de seus ídolos, o austríaco Joseph Alois Schumpeter, então na Universidade Harvard.
Sua maior influência veio de outros dois pensadores austríacos, Ludwig von Mises e, sobretudo, Friedrich Hayek. Levou tempo até Campos consolidar sua visão em torno dos liberais. Participou com Eugênio Gudin, nos Estados Unidos, da Conferência de Bretton Woods, que criou o arcabouço de instituições econômicas do Pós-Guerra.
A voz mais eloquente vinha do chefe da delegação britânica. Embora derrotado pelos americanos em suas propostas, John Maynard Keynes, ninguém tinha dúvida, fizera a análise mais correta da crise que precedera e originara a guerra. Num desses lances da história que desafiam simplificações ideológicas, Keynes contara com a contribuição do próprio Hayek, de quem era amigo, para a formulação de capítulos centrais de sua principal obra, que embasou as decisões de Bretton Woods.
Aos poucos, Campos se afastou do intervencionismo keynesiano no plano das ideias. Passou a pregar diuturna e infatigavelmente contra aquilo que o diplomata Paulo Roberto de Almeida, organizador de um novo livro de ensaios sobre seu legado, classificou como os cinco “ismos”, ervas daninhas a emperrar todo desenvolvimento: nacionalismo, protecionismo, estatismo, corporativismo e patrimonialismo.
Na prática, é verdade, o papel de Campos nem sempre correspondeu à visão teórica. Campos foi responsável por algumas das maiores intervenções do Estado na economia brasileira. No governo Vargas, formulou e presidiu o então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), depois BNDES. Como ministro do Planejamento do governo Castello Branco, criou a correção monetária, logo transformada no indexador que alimentava a inflação.
Quando embaixador em Londres no início dos anos 1980, foi cobrado pela própria Margaret Thatcher — de cujas políticas liberais era admirador — pela criação da indexação. Respondeu que a correção monetária fora deturpada, quando deixou de ser usada apenas em contratos de dívida pública e se estendeu a toda a economia.
Certamente Campos ficaria horrorizado com a deturpação de outra de suas criações: a transformação do BNDES no principal mecanismo por meio do qual governos passaram a distribuir dinheiro com a nefasta política de “escolha dos vencedores”, que culminou, nos governos Lula e Dilma, na destinação de 10% do PIB brasileiro a empresas amigas, entre as quais o maior destaque é a Odebrecht.
As contradições de Campos não lhe tiram os méritos. Na época da criação da Petrobras, foi contra o monopólio na exploração do petróleo (embora a favor da criação da estatal) . Anos depois defendia a privatização da gigante que batizou como “Petrossauro”. Tivesse sido ouvido em seu tempo, teríamos sido poupados do petrolão.
Teve outra visão certeira ao combater a reserva de mercado para a informática nos anos 1980, que deixou o Brasil anos atrasado no setor mais inovador da economia global. Dizia que só fôramos salvos “pelo contrabando e pela pirataria”. As posições liberais do então candidato Fernando Collor de Mello, entre elas a promessa de acabar com a famigerada reserva, o levaram a apoiá-lo em 1990. Dois anos depois, doente, de cadeira de rodas, deu na Câmara o primeiro voto a favor do impeachment de Collor.
Sua contribuição mais relevante se deu quando, ministro do Planejamento de Castello Branco, formulou e pôs em prática o Plano de Ação de Emergência do Governo (PAEG), com Octavio Gouveia de Bulhões na Fazenda. Era um plano de saneamento fiscal e criação do arcabouço institucional que permitiu o milagre econômico dos anos seguintes, com destaque para a fundação do Banco Central.
Na sua concepção, ele deveria ser independente. Quando o governo Costa e Silva decidiu mexer na presidência do BC, Campos se afastou dos militares. Mas não totalmente. Num episódio vergonhoso, que demonstra quão comprometido estava com a ditadura, pediu ao Nobel de economia Paul Samuelson que alterasse o capítulo de um livro em que colocava o regime militar brasileiro ao lado do fascismo, para que não fosse censurado no Brasil.
Manteve-se fiel ao regime até o final — a ponto de votar em Paulo Maluf contra Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985. Eterna nêmese das esquerdas, era visto como “entreguista”, defensor do capital internacional, alcunhado “Bob Fields”. Sua visão presciente dos danos do intervencionismo estatal ao Brasil levou anos para ser reconhecida. Sempre minoritário, nunca esmoreceu. Era, nas palavras do jornalista Paulo Francis, “um guerreiro”.
“Pouca gente é tão odiada no Brasil”, escreveu Francis em 1985, num mea culpa histórico na “Folha de S.Paulo”. “Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. Cheguei à conclusão de que capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, no tipo de economia interrelacionada do mundo de hoje, a saída que se propõe no Brasil de o Estado assumir e administrar leva à perpetuação da miséria.”
O centenário de Campos nos oferece uma oportunidade ímpar para deixar um pouco de lado suas contradições e refletir sobre as ideias que, apenas no fim da vida, começaram a ter o reconhecimento devido. Elas são essenciais sobretudo para uma nova geração de brasileiros, em geral jovens com menos de 30 anos, que se auto-proclamam “liberais” nas redes sociais, mas saem defendendo o nacionalismo populista e anti-liberal hoje representado em nomes como Donald Trump ou Marine Le Pen.
Neste mundo de ideias fluidas e inconsistentes, o exemplo de Campos é mais necessário que nunca. Seu legado foi resumido da melhor forma pelo economista Renato Fragelli, da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista recente ao jornal “Valor econômico”: “No Brasil, a direita quer um Estado grande, para que ele seja saqueado pelo patrimonialismo, enquanto a esquerda quer um Estado igualmente grande, para que ele seja saqueado pelo corporativismo. Campos queria um Estado pequeno, para que ele não fosse saqueado”.
Fonte: G1, 17 de abril de 2017.
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