No longínquo século XX, valentes guerreiros de uma guerra que se chamava de classes, também chamada “trabalhista”, encontraram algo bonito, que reluzia e parecia bom. Rapidamente apanharam a coisa, limparam, friccionaram e a cultuaram: nascia o Poder Judiciário “trabalhista” brasileiro, o único do mundo. A coisa era o Césio-137, que produz injustiça e vem fazendo tanto mal ao País, há várias gerações.
A guerra era por falta de civilidade e excesso de barbárie, mas isto já passou. Entretanto, seus expedicionários se multiplicaram aos milhões, e ainda seguem loucamente em seus confortáveis bunkers, como francos atiradores, abrindo fogo para lá e para cá, em nome da vencida causa da guerra que lhe sustentava, porém fazem apenas tomar o alheio como se ainda fossem despojos.
De fato foram alcançadas vitórias importantes no passado, no âmbito dos justos direitos de quem trabalha. Necessários regramentos das relações de trabalho aconteceram em todos os lugares do mundo. A CLT foi um importante avanço no Brasil. Seu erro, entretanto, maior aqui e menor em outros lugares, está na dose. Está, sobretudo, na oportunista dose de corporativismo estatal e sindical criados em torno de papéis inúteis, burocracia e pesados tributos – criados para sustentá-los, os expedicionários e agora nossos kachigumi – denominação daqueles resistentes japoneses que não aceitavam o fim da guerra.
O Poder Judiciário “trabalhista”, assim, é uma arma que produz mais mal que bem para o Brasil. Como o Césio-137 que danificou as simplórias famílias em Goiás, também marca indelevelmente o DNA da cidadania brasileira, tornando-a menor. Foi colhido das lixeiras experimentais e se transformou, pela fraqueza da economia daquele período, numa espécie de Diana de Éfeso, a deusa inócua. Contaminamo-nos todos e adoecemos. Alguns ainda nem sabem disso, e são eles e seus antecessores que desenvolveram e hoje cultuam esta verdadeira arma de destruição em massa, com know how tão exclusivo como brasileiro Macunaíma. Não há fins pacíficos, não edifica. É uma usina de energia ruim, e destrói, porque estimula o conceito da oposição no trabalho – entre quem contrata e quem é contratado. Torna-os “legalmente” oponentes, necessariamente não confluentes, como seria desejável numa relação moderna, construtiva, entre stakeholders.
Assim, os problemas endêmicos que travam a liberdade de trabalho no Brasil são, em primeiro lugar, as estruturas estatais e sindicais encarregadas de “fiscalizar o trabalho”. E em segundo lugar, a própria lei trabalhista.
Por exemplo, é necessário divergir conceitualmente da medida e do peso utilizado pelo “judiciário trabalhista” para justificar o número de seus juízes, ao se comparar com a justiça comum – o número de juízes federais ou estaduais por 100 mil habitantes é mais ou menos igual ao de juízes “trabalhistas”. A quem se destinam estas diversas “justiças” brasileiras? Se o número de habitantes é a medida para avaliar a adequação do número dos juízes estaduais e federais (Justiça “universal”), não pode servir como vetor estatístico da demanda do Poder Judiciário “trabalhista”, cujo alvo é a população economicamente ativa, apenas. O Poder Judiciário convencional serve a 100% da população, mas o Poder Judiciário ”trabalhista” serve apenas à população economicamente ativa, que é menos da metade da população total.
Mimetizando a Justiça universal, a “trabalhista” foi crescendo e se retroalimentando com as facilidades que oferece, até se tornar este novo e exótico “poder”. Justiça alternativa, e só no Brasil, ela acabou sendo extraída como parte de um todo, e se fez um novo todo, e um novo “poder”. Não deveria sequer existir, assim como está. Repetindo, não existe algo parecido em nenhum outro País. É uma ficção estatal, fruto da nossa ingenuidade antropológica, da malícia corporativa e seus lobbies. Equivocadamente, maliciosamente, universalizou o conceito de que o ato de trabalhar é necessariamente um conflito. Não há justificativa para que este organismo seja tão monstruoso poder no tamanho, e tão totalitário no mérito.
Refeitas as contas e extraído apenas o público alvo das estatísticas aplicadas à avaliação geral, este “judiciário” é o maior batalhão do mundo, em varas, juízes, câmaras, tribunais e funcionários, para julgar toda e qualquer seriedade ou toda e qualquer leviandade levantada pelos “profissionais” que se formaram em torno disso – os “reclamantes” e os seus advogados.
Não se conhece lugar em que haja tão grande contingente de pessoas para fiscalizar uma só área de atividade humana – o “trabalho”. Ou seja, fiscalizar a vida natural em sociedade em seu ponto mais nobre, depois das relações pessoais e familiares. Não há tão vasto “exército” na área criminal, por exemplo, guardadas as proporções.
É loucura oficial que um dos focos principais do Estado brasileiro seja “policiar o trabalho”, fazendo disso uma ocupação primordial, como se a relação de trabalho fosse um potencial mal em si mesmo, ou fosse uma atividade limítrofe entre o bem que faz e o mal que pode fazer – escravizar, abusar.
O juiz trabalhista brasileiro é um funcionário público que poderia ser muito mais bem utilizado pela sociedade. Enclausurado nesta arena, acaba se perdendo em conceitos, restringido que fica ao dito popular segundo o qual “para o martelo, tudo é prego”, e perde a dimensão da vida real, que é o empreendedorismo, o mercado, a sociedade. E passam a pensar absurdamente também, conforme mostrou o trabalho de José Eduardo Faria. Dizem estes juízes “trabalhistas”, formalmente, coisas como “…no exercício de sua atividade tudo farão para a melhoria das condições econômicas, sociais e humanas do povo…” (Manifesto de Garanhuns).
“Deve o juiz assumir uma visão dialética na interpretação da lei, deixando de lado os aspectos estritamente lógico-formais e mecanicistas na aplicação do Direito, integrando norma e fato com seus fundamentos históricos.” (Encontro Nacional de Magistrados do Trabalho). “Propõe a criação de um fundo especial com aporte de empresários, empregadores em geral, que se encarreguem da satisfação dos créditos trabalhistas quando não exista a possibilidade de serem satisfeitos pelo devedor, em caso de falência…”. (Manifesto de Gramado). “…o magistrado revela um ser político … o ato de julgar é pleno de valoração moral e política… uma opção política. Repensar a sociedade… atuando politicamente na transformação social…” (Encontro da Associação dos Magistrados do Trabalho, 4ª. Região). “O juiz precisa… filiar-se a partido político e concorrer a mandatos eletivos…” (Amatra)
Num ambiente globalizado, orientado aos negócios complexos e novos, ao novo empreendedorismo e seus novos modelos, ou seja, a atual sociedade real e o mercado, José Eduardo Faria Lima pergunta “como pode o juiz trabalhista articular, numa decisão, as questões sociais concretas a ele submetidas e os imperativos macro-econômicos, e exigir deles um pathos moral perante a flexibilização jurídica… a liberdade individual e coletiva?”.
Por isso que basicamente todas as reclamações trabalhistas de 100% da mão de obra brasileira, trabalhador rural, braçal, diretor de banco ou de empresa multinacional, têm algum resultado positivo. Há 100% de certeza de algum “sucesso”, com zero de possibilidade de alguma conseqüência punitiva em caso de agir de má-fé – o autor da ação ou seu advogado.
Mas, o Brasil é ainda pior neste assunto: se somadas todas as entidades brasileiras, de alguma forma vinculadas à fiscalização do trabalho (Ministério do Trabalho, Secretarias do Estado do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Previdência Social, FGTS, PIS, milhares de Sindicatos e as Centrais Sindicais), o número de “fiscais” da atividade laboral contar-se-ão centenas de milhares.
Não parece ter direção estratégica nacional uma sociedade que no Século XXI produz seis milhões de ações trabalhistas individuais por ano, 250 mil sessões de julgamento em 5.500 varas específicas, com cinqüenta mil funcionários. O custo marginal desta atividade estatal excede proporcionalmente a atividade principal, o trabalho, e se transforma num negócio de Estado para arrecadar e crescer sem direção, propósito sadio ou sustentação natural.
O que pode pretender de sua economia um país que impõe o depósito de 8,1 bilhões de reais no seu Banco oficial – dinheiro na melhor das hipóteses estagnado nos cofres do governo – para que as empresas possam recorrer do que se chamam sentenças judiciais do foro trabalhista? Ou com 2,2 bilhões de reais por ano, arrecadados pelos ditos juízes “trabalhistas”, em tributos, multas e custas? Ou de 100% de ações “procedentes”? Estes números evidenciam um grande desperdício, além do mal difuso que vem contaminando o caráter nacional. É o tributo da injustiça, fechando seu círculo vicioso. É preciso mudar isto começando agora, numa articulação das partes independentes e libertárias da sociedade brasileira.
Por acaso o autor prefere que os processos trabalhistas sejam submetidos à lenta e ineficiente “justiça comum”? Processos na Justiça do Trabalho geralmente terminam em poucos meses, quase todos em menos de 3 anos. Na justiça estadual e federal demoram décadas!
Ao dizer que a Justiça do Trabalho “estimula o conceito da oposição no trabalho”, o autor mostra desconhecer seu caráter conciliatório. Ademais, a Justiça do Trabalho só é acionada quando já há oposição, quando já há um problema trabalhista. Quando existe de um ponto de conflito (uma lide, como se diz no meio jurídico) é que as pessoas procuram a Justiça. A alternativa seria decidir “no braço” pela lei do mais forte…
E assim é também na Justiça Comum. Ou será que a existência de tribunais penais aumenta o número de homicídios, estupros e roubos? A existência de varas de família aumenta o número de brigas de casais e divórcios?
A pensar desta forma (que a existência do ramo da justiça estimula a oposição) o autor talvez dê a sugestão de que acabemos com todos os juízes e assim viveríamos em paz! É isto que o autor propõe?
Não.
Um Poder Judiciário forte é fundamental numa democracia; melhora o processo civilizatório da sociedade.
Mas não é crível que haja 6 milhões de reais conflitos individuais por ano; nem é crível que em praticamente 100% destas “lides”, o reclamante leva alguma vantagem, por acordo ou por decisão do juiz, chamado juiz trabalhista.
Não há no mundo tamanha superestrutura para fiscalizar o ato de trabalhar.
Na “socialista” França, 70 mil – basicamente coletivas ou difusas ações trabalhistas. No Japão, 2 mil e quinhentos – idem; nos Estados Unidos, 120 mil – muito poucas ações individuais. No Brasil, 6 milhões. Tem algo errado aí.