Todos os organismos criados para estabilizar o mundo depois da 2.ª Guerra Mundial (ONU e seus apêndices, FMI, Banco Mundial) já completaram 60 anos. Com batalhas, mortes, holocausto, destruição, a lembrança da 1.ª Guerra Mundial e do fracasso da Liga das Nações, os vitoriosos mudaram a política. Nada de cobrar reparações de guerra. Em vez disso, Plano Marshall e um aperto na política de negociações.
A ONU, criada em 1945, era aberta e democrática, mas seu único órgão que tinha garras, o Conselho de Segurança, não tinha nada de democrático. Nele estavam os ganhadores. E eles congelaram o conselho.
Em política ninguém dá poder. Pessoas, países, empresas e organizações perdem poder ou ele lhes é tomado.
O mapa político do mundo de 1945 é completamente diferentes do de hoje. Há muito mais cores de países novos ou revividos.
Metade das coisas que usamos hoje foi inventada desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. A ONU mais do que triplicou de tamanho. Os EUA deram o grande salto de crescimento. O comunismo acabou.
O único arranjo congelado foi o Conselho de Segurança. Ninguém quer perder os dentes afiados do único órgão da ONU que tem real poder. A entrada da China como membro permanente, em 1971, foi inevitável. Não dava mais para mantê-la fora.
Mudanças no mundo criaram siglas e entidades, formais e informais: União Europeia, Asean, Brics, Piigs e inúmeros gês: G-5+1, G-15, G-20, etc. Todos refletiram mudanças que iam sendo consolidadas, ao passo que a 2.ª Guerra ficava mais longínqua na História.
Um documentário feito em 2003, Sob a Bruma da Guerra, traz depoimento de Robert McNamara, analista militar norte-americano durante a 2.ª Guerra, secretário de Defesa dos EUA no governo Lyndon Johnson (quando comandou a escalada americana no Vietnã), demitido do Pentágono e nomeado presidente do Banco Mundial. Naquele, sua tarefa era vencer uma guerra, matando quantos inimigos fosse necessário. Neste, era construir o mundo para alimentar tanto quantos famintos precisassem. Estranha mudança.
McNamara menciona que antes do uso da bomba atômica os EUA bombardearam Tóquio com bombas incendiárias. Queimaram quase a cidade inteira, cujas construções eram, basicamente, de madeira. Disse ainda no documentário que, se os EUA houvessem perdido a guerra, eles, e não os alemães, estariam no banco do réus em Nuremberg.
Com a distância que a História proporciona, fatos mudam e passam a ser vistos com olhos que não havia na emocionalidade do conflito.
A imprensa brasileira enfatizou o papel do Brasil – uns contra e outros a favor, mas todos tentando ser simpáticos – do presidente Lula no recente acordo com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio. É impossível, entretanto, analisar o que aconteceu sem levar em conta a grande ausente na imprensa brasileira: a Turquia. O papel da Turquia foi minimizado e quase ignorado.
Grande erro geopolítico. Não foi um acidente que exatamente Brasil e Turquia tenham sido os países que lideraram a iniciativa. A jogada foi arriscada. Pode dar certo ou não, mas o fato concreto é que essa iniciativa tinha na mira não só encontrar uma fórmula de convivência entre o Irã e os cativos do Conselho de Segurança da ONU, mas, sobretudo, chamar a atenção para dois países fundamentais na geopolítica do século 21.
Não preciso enfatizar aqui todas as características brasileiras que aprendemos desde a escola primária: tamanho, localização, espírito pacífico, paz social e tudo o que os cursos de História e a socialização política pintam de verde e amarelo quando nos ensinam sobre o Brasil.
Mas, e a Turquia, sobre a qual pouco sabemos no Brasil? Para começar, ela é o grande corredor entre a Europa e a Ásia. Boa parte do comércio e da energia que iluminam, movem e esquentam a Europa passa pela Turquia. É um país maometano que foge do radicalismo de muitos de seus vizinhos. É vizinho do Irã, do Iraque e da Síria. Tem indicadores econômicos, sociais e militares altamente positivos. É candidato à União Europeia e tem aspirações internacionais parecidas com as do Brasil.
O acordo com o Irã foi uma tentativa arriscada de dois atores internacionais que estão batendo na porta do Conselho de Segurança e precisam dizer, como os Demônios da Garoa: “Ói nóis aqui…”
A tentativa de mediação turca e brasileira não foi bravata, nem foi acidente o fato de que à Turquia coube o anúncio (antes do Brasil) de que os três países haviam chegado a uma acordo. Ela teve 12 horas de vantagem sobre o Brasil, afinal, ali, onde acaba a Turquia, começa o Irã.
A jogada foi arriscada, mas não foi final. Não foi um xeque-mate. Foi mais um lance de dois países que têm planos e aspirações de participar mais intensamente da formação da política mundial no órgão que detém as garras da ONU.
Muito anda sendo feito por ambos em outros foros. No momento em que os EUA ainda enfrentam a ressaca da crise de 2008-2009 e União Europeia entra na crise com toda a força (na semana que se sucedeu ao anúncio do acordo, a crise derrubou as bolsas europeias, pondo em xeque a existência do euro e, quiçá, da própria União Europeia).
Do ponto de vista de política internacional, Turquia e Brasil não podiam ter escolhido melhor momento para bater na porta do Conselho de Segurança. Se der certo e eles conseguirem ampliar o conselho, como já vem ocorrendo em outros foros, principalmente econômicos, tanto melhor. Parabéns.
Se ainda não for dessa vez (e se as crises americana e do euro não desarranjarem de vez o mundo), da próxima eles poderão bater um pouco mais forte na porta e, como os Demônios da Garoa, dizer: “Ói nóis aqui… tra veiz.”
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 02/06/10
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