Esta crise reúne as piores características de todas as anteriores: a insegurança que veio com o 09-11, a ansiedade com o HIV, o impacto econômico sistêmico de 2008, tudo isso junto com a turbulência financeira, que foi a tônica das crises dos anos 1990. Mas há singularidade.
Esta crise não nos traz um problema cambial, o que não quer dizer que não vai ter agitação nesse mercado, sempre tem, e pode ser que tenha mais, mas o câmbio não é um tema importante dessa vez.
A inflação está prostrada numa mínima histórica e, com isso, o país entra na crise com os juros a 3,75%, o que muda todo o protocolo, sobretudo numa crise na qual o crédito é o primeiro problema a enfrentar. Ainda bem que fizemos o dever de casa no passado, contrariamente à opinião da medicina econômica alternativa.
Pois bem, o custo do endividamento, público e privado, vai ser muito menor do que em qualquer outro episódio de estresse financeiro do passado. Mas é preciso que a liquidez chegue a quem precisa, trabalho para o BC monitorar os bancos, sobretudo os analógicos (os digitais nunca passaram por isso, e poderão ajudar muito, pois sua “agência” é o seu celular, onde não tem aglomeração).
O crédito vai ser o grande assunto desses primeiros tempos, todo mundo vai precisar de crédito, e todos vão falar de garantias e da solidez futura do negócio do tomador.
Mas, além de linhas de crédito para resolver problemas localizados de liquidez, há dois outros desafios: (i) estímulos fiscais diretos para compensar a redução na demanda agregada; e (ii) choques de oferta em decorrência de “ausência” de fatores de produção (componentes que não chegaram da China e gente que não veio trabalhar).
As medidas fiscais e de crédito são relativamente conhecidas, a maior parte já foi utilizada em outras crises, e muitos países estão meio que competindo sobre quem vai gastar mais.
Sim, temos que aumentar a despesa pública porque temos uma emergência, vamos ter que nos endividar por conta disso. Assim são as emergências.
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Dito isso, não vamos imaginar que não existe mais nenhum limite e que entramos no terreno do “vale tudo”, ou do “ninguém paga ninguém”, ou que está na hora de chamar de volta os inflacionistas.
Todos já deviam saber que o grande problema de políticas anticíclicas não é reconhecer a emergência e apertar a tecla G, mas tirar o dedo do botão. Remédios excepcionais viram veneno quando usados como medicamento regular.
Mundo afora, os governos estão gastando muito e se endividando, e o nosso já colocou na rua valores bem expressivos, mas não há como saber se será eficaz e suficiente.
O desafio mais óbvio é o de fazer o dinheiro chegar onde é necessário: o BCB e o BNDES não têm capilaridade, operam através do sistema bancário, que nem sempre chega aos públicos desejados, o que vale também para a CEF e para o BB.
Um exemplo interessante da dificuldade é o do chamado “coronavoucher”: o presidente anunciou, o Congresso triplicou o valor, impôs uma série de restrições e condições, mas como se faz um cadastro de informais?
Trabalhar com os MEIs é uma boa ideia, procurando, inclusive, levar os “informais” para este regime.
Bem, resta um dedo de prosa sobre as medidas pelo lado da oferta para as quais, infelizmente, a coisa começou torta com o encaminhamento atrapalhado da MP 927.
É da maior importância para lidar com a crise que se crie a possibilidade de flexibilizar salários e outras condições de trabalho de modo a salvaguardar o emprego. A rigidez de nosso regime laboral será extremamente prejudicial ao trabalhador nesse momento em particular.
O título do filme deveria ser algo como “programa para preservação do emprego”, pelo qual a empresa se compromete a manter o vínculo por certo tempo adicional, em troca de flexibilidade e mesmo uma complementação com dinheiro público.
Os adversários da reforma trabalhista, a OAB e os operadores da Justiça do Trabalho se opuseram, pois vivem de premissas pelas quais as empresas não precisam ser preservadas e que o trabalhador é hipossuficiente, e aproveitaram a atrapalhação na apresentação da MP 927 para detonar a medida. Mas é preciso recuperar o conceito e avançar com a flexibilização, vai ser importantíssimo para minorar os efeitos recessivos da crise.
Fonte: “O Globo”, 29/3/2020