Peço licença hoje ao leitor para tratar de um assunto bastante insosso: o deflator implícito do Produto Interno Bruto (PIB). Explico imediatamente a razão da escolha de tema tão singular para meu artigo mensal nas páginas do Valor.
O motivo do meu “mergulho” no assunto está, por incrível que pareça, relacionado com a minha dedicação à temática previdenciária, já conhecida por muitos leitores. Com alguma frequência, recebo e-mails me perguntando por que os problemas que eu vaticinava para as contas do INSS não estavam se revelando tão sérios como eu supunha.
Aqui, um parêntese importante: não obstante o fato inquestionável de que o déficit do INSS diminuiu nos últimos anos, graças ao “boom” da receita, é fato por outro lado que a despesa do INSS, especificamente, que era de 6% do PIB no fim do governo FHC, atingiu 6,9% do PIB no fim do governo Lula, oito anos depois, sinal de que o problema do aumento do tamanho da conta com inativos continuou a se agravar.
Também é verdade, porém, que entre 2006 e 2010, especificamente, tal importância relativa se manteve relativamente constante – a rigor, até caiu ligeiramente em relação aos 7% do PIB de 2006.
Uma explicação é mais ou menos óbvia: no primeiro governo Lula o crescimento médio anual foi de 3,5% e, no segundo, de 4,5%. Com um dinamismo mais intenso da economia, o pagamento a um dado número de aposentados e pensionistas pesa menos, em termos relativos, do que se o crescimento do PIB fosse mais lento. O fato em si já seria razão suficiente para encarar o futuro com cautela, uma vez que não há garantias de que o país será capaz de sustentar um crescimento médio de 4,5% durante décadas, que é o período que cabe levar em conta quando se avaliam as perspectivas da Previdência Social, onde os prazos de referência são sempre muito dilatados.
Na realidade, porém, o maior dinamismo da economia no segundo governo Lula é apenas um dos fatores que explica por que a conta do INSS não aumentou mais no período. O outro fator foi justamente o comportamento do deflator do PIB – o que explica a escolha do tema para o artigo de hoje.
A tabela mostra a dimensão do enigma. Em geral, quase todos nós raciocinamos, a princípio, como se os diferentes índices de preços evoluíssem mais ou menos à mesma taxa. E, de fato, a longo prazo, isso faz sentido. Não consigo, por exemplo, imaginar razões muito profundas para supor que, em um período de 20 ou 30 anos, a trajetória do deflator do PIB deva ser muito diferente da variação média do INPC.
Em períodos específicos, porém, as diferenças podem ser importantes. Note-se por exemplo o que aconteceu partindo do ano de 1995. Nos primeiros oito anos, até 2003, a variação do deflator do PIB seguiu aproximadamente a do deflator do consumo nas Contas Nacionais (CN) e se manteve em média 0,7% acima da variação média do INPC. Esse descasamento se acentuou nos sete anos seguintes, quando o deflator do PIB teve um incremento médio anual de 6,9%, contra uma variação do INPC de 5,2%.
Note-se que essa diferença, por um período de sete anos, significa que partindo da mesma base em 2003, o número-índice do deflator do PIB em 2010 se situou num nível 12% superior ao do INPC. É exatamente essa a razão do fenômeno pelo qual, durante vários anos, todos passamos o ano inteiro trabalhando com um número de crescimento real bastante expressivo do gasto público quando deflacionado mês após mês pelo INPC ou pelo IPCA, mas após a divulgação do PIB e passando a deflacionar o mesmo dado nominal pela variação do deflator do PIB, disso resultavam taxas de crescimento real bem mais modestas do dispêndio.
Por que esta discussão, aparentemente tão enfadonha, é tão importante? Porque ajuda a entender porque o passado não pode ser projetado para o futuro. O país adotou uma regra generosa para os aumentos do salário mínimo, em um contexto no qual: 1) o crescimento do PIB foi bastante intenso; e 2) o deflator “correu por cima” do INPC (base para o reajuste das aposentadorias).
Com isso, o governo pôde colher os louros da sua política de valorização do salário mínimo e do piso previdenciário, sem que isso sacrificasse as contas da Previdência Social. No futuro, porém, assumindo que o PIB tenha dificuldades para sustentar um crescimento médio de 4,5% indefinidamente e que cedo ou tarde o deflator se aproxime da trajetória do INPC, essas duas fontes de pressão “baixista” da relação gasto do INSS/PIB deverão perder força ao longo do tempo. Quando isso acontecer, aumentos reais do salário mínimo passarão a afetar mais fortemente as contas públicas, quando as variáveis são expressas como proporção do PIB. É preciso começar a pensar nestas questões, com vistas à definição da regra de reajuste do salário mínimo quando esta vier a ser revista, daqui a três anos.
Fonte: Valor Ecomômico, 16/11/2011
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