A pandemia atingiu o Brasil em cheio. O vírus covid-19 impõe ao País uma agenda que exige dos governos gastos da ordem de centenas de bilhões de reais para todos os brasileiros. Seja com o auxílio emergencial às famílias mais vulneráveis, seja com linhas de crédito às pequenas empresas, o Estado brasileiro precisará fazer um esforço fiscal hercúleo para arcar com o combate ao coronavírus. Há um elemento, contudo, que poderia ajudar muitas pessoas com necessidades de financiamento imediato, mas que nunca foi devidamente tratado pelo Poder Público: a regularização da propriedade imobiliária.
De acordo com o Secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, a dívida pública bruta deve chegar ao fim de 2020 entre 85% a 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2019, o nível da dívida bruta do governo geral estava em 75,8% do PIB. Já o endividamento das famílias supera a marca de 66% da população brasileira. Isto é, seja pelas vias de dívida pública ou endividamento privado, o País precisa enfrentar um desafio considerável para conseguir viabilizar injeção de mais liquidez além dos níveis já atingidos atualmente a partir do crédito.
O economista Hernando de Soto, porém, levanta uma alternativa como possível caminho para injetar maior liquidez à economia e garantir a irrigação de recursos para as pessoas sem fazer a dívida pública estourar com gastos governamentais: a propriedade privada formalizada e registrada como garantia colateral de um empréstimo no banco. Trata-se de solução para o longo prazo e, de certa forma, difícil de ser aplicada de imediato, porém com enorme potencial econômico. E é para essa alternativa que devemos olhar com especial atenção.
Os países pobres sofrem com um problema crônico comum às suas instituições: o elevado nível de informalidade. Não faltam, afinal, causas para isso: via de regra, a burocracia para a abertura de novos negócios é custosa e demorada; o pedido e a concessão de licenças são difíceis e complexos; e, sobretudo, o registro e a formalização da propriedade privada são processos caros, burocráticos e inacessíveis aos mais pobres. A consequência é lógica: empresas “extralegais”; corrupção e propina “fazendo a roda girar”; e terrenos irregulares sem os devidos registros cartoriais. E todos esses recursos, informais e extralegais, não existem formalmente aos olhos do ordenamento jurídico brasileiro.
Agora, juntando esses dois elementos – necessidade de injeção de recursos na economia e grandes quantias de ativos físicos informais e não registrados – e os combinando em análise conjunta, pode-se perceber o potencial engessado que temos no Brasil. No País inteiro, são cerca de 30 milhões de domicílios urbanos sem o devido registro cartorário, o que corresponde a aproximadamente 50% dos imóveis. Falta o básico: uma escritura. Por conseguinte, sem o registro da propriedade, o cidadão passa a ter dificuldades para acessar serviços como água e esgoto, iluminação pública, endereço postal e até mesmo direito de herança da propriedade. Mas, além de tudo, o cidadão com propriedade irregular não pode usar seu ativo físico como garantia no sistema bancário.
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Os bancos e as instituições financeiras desempenham um papel crucial no sistema de reservas fracionárias: o poder da criação de dinheiro a partir de ativos físicos. Quando uma pessoa usa a hipoteca de sua casa em forma de garantia para um empréstimo bancário, há um bem físico como lastro que permite ao banco a concessão de crédito equivalente. Sem qualquer ativo físico, esse mesmo tomador de crédito certamente teria um limite disponível consideravelmente menor, ou, então, pagaria taxas de juros consideravelmente maiores. Nos livros contábeis dos bancos, uma entrada com o título de propriedade como garantia tem sua contrapartida como uma saída com a emissão de dinheiro em favor do titular. A propriedade, portanto, representa o capital e o dinheiro em crédito, a forma que o banco contabiliza e traz liquidez à garantia.
E os bancos aceitariam como garantia imóveis em regiões de favela, por exemplo? As experiências existentes ao redor do mundo e, principalmente na América Latina, mostram que sim, mas, para tanto, é necessário haver um sistema de registro de propriedades que garanta, com segurança, a possibilidade de o banco ou a instituição financeira em questão executar aquela garantia. Por outro lado, se há incerteza quanto à possibilidade de o banco rastrear o ativo colateralizado por determinado CPF, não há incentivo para conceder empréstimos com imóveis como garantia. É esse o desafio a ser encarado no País.
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O problema é que, no Brasil, com um imóvel irregular, o cidadão tem possibilidades muito restritas e não consegue usar o ativo físico de forma a rentabilizá-lo. Os 30 milhões de imóveis irregulares constituem uma espécie de “capital morto”, isto é, que poderia estar, uma vez registrado devidamente, circulando na forma de hipotecas e colaterais para garantir liquidez a seus titulares. De acordo com Hernando de Soto, existem aproximadamente US$10 trilhões de “capital morto” ao redor do mundo. No Brasil, são algumas dezenas de bilhões de reais que deixam de circular pela falta de registros sólidos de propriedade.
A defesa da propriedade privada nunca se fez tão necessária quanto agora. Direitos sólidos e liberdades contratuais amplas aos proprietários são pilares básicos para uma retomada econômica mais robusta e sustentável. O Brasil tem ativos físicos subcapitalizados. O que precisamos agora é garantir a solidez jurídica e a acessibilidade ao ordenamento jurídico para transformar esse “capital morto” em liquidez e em dinheiro corrente para quem mais precisa de giro neste momento. É possível girar a economia brasileira com menos dívida pública e com mais inclusão às instituições de propriedade privada formal no País.