Javert, o policial de “Os miseráveis”, de Victor Hugo, ao advertir, nas palavras de Mário Vargas Llosa em “La tentación de lo imposible”, que “o bem e o mal não são, como ele pensava, algo rigidamente separado e reconhecível, mas caminhos que se cruzam entre si e por vezes se perdem um do outro sem que seja possível distingui-los”, exclama em determinado momento, algo assoberbado pelos dilemas que lhe toca enfrentar: “Que fácil é ser bom. O difícil é ser justo.” Sábias palavras, que devem ser lembradas quando se pensa no desafio previdenciário para as próximas décadas.
O IBGE divulgará em poucas semanas a nova tábua de mortalidade. De um ano para outro, as diferenças são sempre modestas, mas, ao longo do tempo, as mudanças são enormes. Na década de 70, um homem que chegasse vivo aos 60 anos tinha, em média, uma expectativa de viver mais 16 anos. Hoje, essa expectativa pulou para mais 20 anos (ou seja, mais 4 anos de vida, devido aos avanços da medicina). No caso das mulheres de 60 anos, tal expectativa passou de mais 17 para 23 anos (6 anos de diferença). Mais ainda: em 2030, a projeção oficial é que tais parâmetros aumentarão para 22 e 26 anos para homens e mulheres, respectivamente.
Recentemente, um jornalista escreveu uma matéria afirmando que a reforma que eu e outros colegas defendíamos nos textos publicados há alguns anos pelo Ipea acerca da questão previdenciária seria “neoliberal”. Fariam bem as pessoas imbuídas de concepções maniqueístas do mundo em pensar nas palavras do personagem de Victor Hugo acima citado. Quando se trata de discutir questões previdenciárias, dividir o mundo entre “mocinhos” e “bandidos” beira o ridículo. Não há pessoas “a favor” ou “contra” os idosos. Há simplesmente um megadesafio demográfico pela frente.
Em geral, mesmo quem defende a conveniência de o país realizar uma reforma que modifique as regras de aposentadoria, aponta para o envelhecimento da população como a grande justificativa. Na verdade, porém, esse não é o único fenômeno que age sobre as tendências demográficas do país. O segundo grande movimento populacional em curso é que nasce cada vez menos gente, em função da queda drástica das taxas de fecundidade, pela combinação de avanço dos métodos contraceptivos e maior informação. Como consequência, o número de crianças de 0 a 4 anos está em queda absoluta no Brasil desde a década de 90. Eram 18 milhões de crianças na primeira infância em 1990, o número cedeu para 15 milhões em 2010 e as projeções indicam que a redução continuará sem ser interrompida pelos próximos 40 anos. Em 2050, tenho dito nas minhas palestras sobre o tema que bebê será algo disputado a tapa no país, de tão pouco comum que será ver recém-nascidos pelas ruas!
Está em curso uma inversão da nossa pirâmide populacional. No ano 2000, havia no Brasil 51 milhões de crianças e jovens de 0 a 14 anos e apenas 14 milhões de pessoas com idades de 60 anos ou mais. As projeções do IBGE indicam que em 2050 esses números terão mudado para 28 milhões e 64 milhões de pessoas, respectivamente.
No universo dos grupos populacionais extremos, a mudança é ainda maior: entre o ano 2000 e a projeção oficial para 2050, o universo de crianças de 0 a 4 anos encolherá de 17 milhões para 9 milhões de pessoas, e o dos idosos de 80 anos ou mais aumentará de 2 para 14 milhões de pessoas.
Ao longo dos últimos 20 anos, tenho me debruçado sobre essa questão e discutido os desafios que isso gera para o Brasil. Nessas duas décadas, o próprio processo de envelhecimento associado ao ser humano — ninguém encara a vida aos 50 anos com os mesmos olhos que aos 30 — me fez aprofundar o senso de transitoriedade acerca do papel de cada indivíduo no mundo em que vivemos e aumentou da minha parte o que entendo ser um dever de solidariedade daqueles que hoje estamos na ativa, em relação às gerações dos nossos filhos e netos. Cedo ou tarde, o Brasil terá que encarar esse desafio demográfico sem a demagogia escandalosa que tem marcado o posicionamento de todos os partidos políticos — sem exceção — sobre a matéria. Espero em futuros artigos, neste espaço que o jornal me oferece uma vez por mês, procurar contribuir, modestamente, para qualificar esse debate tão delicado quanto necessário.
Fonte: O Globo, 14/11/2011
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