As duas afirmações seguintes não são idênticas: 1) Pobre do país que envia à prisão o candidato presidencial favorito; 2) Pobre do país cujo candidato presidencial favorito é enviado à prisão. A primeira concentra uma narrativa filopetista na qual a vontade popular é fraudada pelo Estado. A segunda, uma narrativa antipetista, na qual a ordem legal protege a nação do populismo.
Ambas, porém, concordam no qualificativo empregado como lamento: numa versão ou na outra, a prisão de Lula revela a dimensão da crise nacional brasileira.
Já se falou demais sobre a “história de vida” de Lula. Conta-se que, para preservar um simbolismo político valioso, FHC dissuadiu os tucanos de apresentarem um pedido de impeachment após as confissões de Duda Mendonça, em 2005, auge do escândalo do mensalão, quando um Lula alquebrado segurava-se nas cordas. O romance épico do retirante nordestino famélico que conquistou o Planalto seria, segundo o sociólogo tucano, um mito político insubstituível: a coroa de louros de nossa jovem democracia. O que fazer com isso, no dia da prisão de Lula?
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O Lula descrito por Lula nunca foi menos que a metáfora de forças sociais irresistíveis. Nas assembleias da Vila Euclides, em 1980, ele disse que corporificava a classe trabalhadora. Nos dias de glória do Palácio, desde 2003, e depois, sob o assédio dos tribunais, passou a dizer que corporifica o próprio povo brasileiro. A derrota de Lula equivaleria, então, à derrota da nação.
Você tem o direito de divergir dessa narrativa arrogante, de evidentes raízes autoritárias. Mas, tirando os cínicos incuráveis, ninguém discordará de que a democracia brasileira perde algo muito relevante: a oportunidade de julgar, nas urnas, o legado dos governos de Lula e Dilma. O lulismo condenado pelos juízes escapa ao tribunal da cidadania. Isso tem consequências.
Na “era Lula”, a Petrobras foi colonizada por um cartel de partidos políticos —PT, PMDB, PP— e extorquida pelo cartel de empreiteiras associadas ao lulismo. Sob o comando de Lula, o BNDES transferiu fortunas ao empresariado que orbitava em torno da lâmpada do Estado.
O “pai dos pobres” gabava-se de ser, ao mesmo tempo, o “pai dos ricos”. Mas o Lula que ruma para uma cela da PF não é o camarada dos Odebrecht, o brother de Eike Batista, o patrono do metrô de Caracas ou o mecenas do ditador angolano José Eduardo dos Santos, mas apenas o presumido proprietário de um tríplex vagabundo numa praia urbana decadente.
No fim, a obra da Justiça é um tapume que oculta a obra do lulismo —e, nesse passo, evita o escrutínio público dos capítulos decisivos de nossa história recente.
O dia da prisão de Lula deve ser anotado no calendário como o zênite de um fracasso nacional: nossa persistente incapacidade de extrair as lições da falência do lulismo. A nação polarizada entre fanáticos lulistas e fanáticos antilulistas desistiu de examinar os fundamentos da política econômica que provocou a mais profunda depressão de nossa história recente.
O país hipnotizado pela novela vulgar do processo de Lula abdicou de refletir sobre a natureza das políticas sociais voltadas para estimular o consumo privado. A crítica política do lulismo deu lugar à histeria regressiva do bolsonarismo. É como se, a caminho da cadeia, Lula tivesse lançado um feitiço idiotizante, condenando-nos a uma guerra fratricida sobre seu destino pessoal.
O suicídio de Vargas eternizou o varguismo. A prisão de Lula não abole o lulismo, mas o emoldura para a posteridade. Numa ponta, oferece alento à narrativa exterminista de uma direita em rebelião contra o princípio do pluralismo. Na outra, remete às calendas a hora do acerto de contas da esquerda brasileira com o populismo lulista.
Não chore. Não comemore. No dia de sua prisão, Lula ganhou a liberdade de iludir um pouco mais.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 07/04/2018