Dona Dilma Rousseff parece não ter desistido dos R$ 40 bilhões da CPMF, o extinto imposto do cheque, também conhecido como Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. O Ministério da Saúde, segundo ela, precisa desse dinheiro. Ou se remanejam verbas ou se negocia a criação de um imposto, disse a ex-ministra e pré-candidata numa entrevista à Rádio CBN. Acertou pela metade. Remanejar verbas é a solução, se de fato faltar dinheiro para os programas de saúde ? uma afirmação ainda não comprovada. Recursos não faltam ao Tesouro. Se esse fosse o caso, o governo não poderia elevar o salário real do funcionalismo como tem feito regularmente, nem inflar a folha de salários como nos últimos sete anos. Entre 2003 e 2009, a despesa média com servidores civis aumentou 101,1% no Executivo, 81,9% no Legislativo e 97,9% no Judiciário, em termos nominais. Nesse período, a inflação ficou em 59,1%.
A União gasta mal e conduz seus programas com incompetência. Neste ano, até abril, o Tesouro desembolsou R$ 10,96 bilhões para investimentos, apenas 17,1% dos R$ 62 bilhões autorizados para os 12 meses, segundo tabela montada pela organização Contas Abertas. Desempenho pífio, mas, apesar disso, o valor pago foi 80,9% maior que o de igual período de 2009, descontada a inflação. A maior parte do valor aplicado saiu de restos a pagar. São verbas empenhadas em exercícios anteriores e não usadas por incapacidade administrativa.
Sobra dinheiro, mas cresce a dívida bruta do setor público, e não só por causa da compra de dólares. O governo gasta mais do que deve, de forma improdutiva, e, além disso, endivida o Tesouro para abastecer o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). É uma recaída na promiscuidade bem conhecida no tempo da conta movimento, extinta pelo ministro Mailson da Nóbrega.
“Não estamos quebrando, estamos cada dia mais robustos”, disse a ex-ministra. Para as contas públicas esse comentário não vale, exceto na visão muito particular da pré-candidata. Essa percepção especial se revela também num comentário sobre o fim da CPMF. Segundo ela, a eliminação do imposto do cheque não reduziu preços nem beneficiou o consumidor. Estranho comentário para uma economista: R$ 40 bilhões ficam no mercado, em vez de ser recolhidos, e não afetam os negócios? Só se tiverem sido entesourados. Pelo desempenho da economia, em 2009, não parece ter sido o caso.
Não se deve estranhar a choradeira pelos R$ 40 bilhões. O presidente Lula volta ao assunto com frequência, para atribuir à oposição um atentado à saúde do povo (como se a extinção da CPMF tivesse ocorrido sem os votos da base aliada). Mas não se trata só de retórica.
A fala do presidente corresponde a uma concepção de governo: muita tributação, muito espaço para ocupação partidária e muita centralização de poder. Quarenta bilhões a mais para o Ministério da Saúde representam vários bilhões a mais para o governo destinar a quaisquer outros gastos. Com isso se evitam o remanejamento de verbas e maiores preocupações com a qualidade e a eficiência da despesa pública. Cuidar do poder é o mais importante.
Essa concepção explica o empenho do governo ? e especialmente da ministra Dilma Rousseff ? em manter as agências de regulação sob o controle do Executivo. A pré-candidata falou sobre o papel das agências, na entrevista de segunda-feira, sem mencionar a autonomia e sem lembrar quanto tempo várias delas ficaram sem diretores suficientes para a operação normal.
O endividamento do Tesouro para abastecer o BNDES e a maior centralização da política do petróleo, embutida nos projetos do pré-sal, são componentes desse desenho do poder.
Como o escorpião da fábula, o grupo hoje ligado ao núcleo do Executivo não pode negar a própria natureza. Esta se revela na defesa constante do governo custoso e centralizador e no incorrigível autoritarismo do chamado Decreto dos Direitos Humanos. A versão maquiada mantém o avanço contra os meios de comunicação, ao mencionar “o cumprimento de seu papel na promoção da cultura dos Direitos Humanos” e ao propor a “criação de um marco legal (…) estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão”. Não se trata de defender direitos, mas de estabelecer controles. No caso das invasões, o novo texto substitui a mediação anterior à reintegração de posse, proposta na versão original, pela participação prioritária do Incra e de outros institutos de terras nas demandas judiciais. Muda o discurso, o ferrão é o mesmo.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 19/05/10
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