A Alemanha decidiu, enfim, escrever, preto no branco, o que deseja fazer com o próprio Estado. A “Modernisierungsagenda – für Staat und Verwaltung“, aprovada em outubro de 2025, é a tentativa mais explícita, em muito tempo, de dizer como o governo federal pretende tornar o país “mais rápido, digital e capaz de agir”.
O documento não é uma revolução conceitual. Ele é, antes, um grande plano de ação: cinco campos de atuação, 80 medidas, 23 projetos-chave, metas numéricas para reduzir custos de burocracia em 25% (algo como 16 bilhões de euros) e cortar 8% do quadro de pessoal da administração federal, além de 10% das despesas de custeio. Trata-se de um Estado que se compromete publicamente a encolher, simplificar processos e, ao mesmo tempo, digitalizar a sua engrenagem.
Há um mérito importante nisso: a agenda institui prazos, números e instrumentos. E, num país que se habituou à fama de “lento, mas sólido”, isso não é trivial.
O governo criou um órgão específico para coordenar esse esforço – o Ministério da Transformação Digital e Modernização do Estado (BMDS) – buscando evitar que se trate de apenas mais um conjunto de boas intenções dispersas entre diferentes agências. Há uma aposta clara: concentrar autoridade, estabelecer uma agenda comum e evitar que cada pedaço da máquina pública siga sua própria lógica de inércia.
Uma estratégia em duas velocidades
O que chama atenção na abordagem alemã é a tentativa deliberada de operar em duas velocidades simultâneas. De um lado, há os “low hanging fruits” – medidas que podem ser implementadas rapidamente e gerar resultados visíveis no curto prazo: Um portal único para abrir empresas em 24 horas; A unificação de mais de 400 sistemas regionais de licenciamento de veículos num serviço nacional online; um balcão unificado para acelerar a fixação de imigrantes qualificados, e assim por diante.
São ganhos tangíveis, que um cidadão pode experimentar diretamente: o carro se registra online em poucos cliques, a empresa abre em um dia, o processo de visto deixa de ser um labirinto. A lógica aqui é clara: vitórias rápidas geram confiança pública de que a agenda de reformas é pra valer e, com isso, criam capital político para sustentar mudanças mais profundas e demoradas.
De outro lado, há medidas mais estruturais e de longo prazo: o “Deutschland-Stack“, uma série de padrões que permitam o intercâmbio de dados e a reutilização de sistemas por governos de todos os níveis; o princípio “once-only“, segundo o qual o cidadão só informa um dado uma vez e o Estado cuida de fazê-lo circular internamente; e o ambicioso conceito de “Law as Code“, em que a própria legislação seria escrita de forma a ser executável por máquinas, eliminando etapas de interpretação manual e preenchimento de formulários.
Essa combinação não é acidental. A estratégia reconhece que reformas profundas levam anos e enfrentam resistências. Mas sabe também que, sem resultados rápidos, a paciência pública se esgota e a vontade política desaparece. A aposta é que os ganhos de curto prazo comprem tempo para que as mudanças estruturais maturem.
O que a agenda acerta
O primeiro ponto forte é político-institucional. A Alemanha não está tratando modernização como um projeto isolado de um ministério, mas como um esforço coordenado entre governo federal, estados (Länder) e um órgão independente de controle regulatório.
A chancelaria e os 16 governos estaduais aprovaram uma “Föderale Modernisierungsagenda” com mais de 200 medidas para acelerar licenças, simplificar obrigações de reporte e digitalizar procedimentos em todos os níveis de governo. E há, acompanhando esse processo, o Nationaler Normenkontrollrat (NKR), um conselho independente criado há quase duas décadas que mantém um inventário do volume e do custo das normas que regulam a economia e a sociedade alemãs. O NKR atua numa dimensão específica, mas importante: mede o “Erfüllungsaufwand” – o esforço necessário para cumprir obrigações regulatórias – e pressiona por sua redução. No relatório anual de 2025, o conselho registra, pela primeira vez em muito tempo, uma queda relevante desse custo: cerca de 3,2 bilhões de euros a menos entre 2024 e 2025, em grande parte devido a medidas de aceleração da aprovação de obras públicas.
Isso não resolve todos os problemas do Estado alemão, evidentemente. A “motosserra” sobre o custo e o tamanho dos procedimentos burocráticos é uma dimensão da Reforma do Estado – importante, mensurável, com impacto direto sobre empresas e cidadãos. Mas é apenas uma dimensão. A reforma do serviço civil (como se seleciona, treina, incentiva e avalia quem trabalha no Estado) é outra, e ela aparece de forma bem mais tímida na agenda de modernização do governo federal alemão. A digitalização, por sua vez, tem lugar de destaque, ocupando boa parte da atenção e dos recursos. Essa distribuição de prioridades revela escolhas: a Alemanha está apostando que tecnologia e desburocratização podem compensar, em parte, a ausência de uma reforma mais profunda na gestão de pessoas e na arquitetura organizacional do próprio Estado.
O segundo mérito está no tipo de promessa que a agenda faz. Em vez de se refugiar em conceitos vagos de “inovação” ou “governo 4.0”, o documento lista entregas específicas que qualquer cidadão pode entender. É uma linguagem menos inspiradora, talvez, mas mais verificável. Em alguns anos, será possível checar se o carro realmente se registra online em poucos cliques, se o empresário consegue de fato abrir uma firma em um dia, se o imigrante passa menos tempo preso em labirintos administrativos.
Há ainda outro elemento relevante: a agenda assume um diagnóstico duro. O Estado alemão está sobrecarregado por regras, processos e estruturas que ele próprio criou. O ministro responsável fala abertamente em um país “amarrado por normas, procedimentos e regulamentos”, que agora precisa “desatar o nó”. Esse reconhecimento político, em um sistema acostumado a confiar na excelência jurídica da própria máquina, não deixa de ser um passo cultural relevante. Admitir que a obsessão pela regra virou obstáculo à agilidade é, em si, uma mudança de mentalidade importante.
Onde o documento tropeça
Justamente por ser um começo promissor, as falhas do documento chamam atenção. Elas dizem menos sobre a má vontade de reformar e mais sobre os limites de uma visão sobre a Reforma do Estado que, no fundo, é politicamente tímida – e que hesita em enfrentar diretamente as questões de poder e incentivos que sustentam uma burocracia de baixo rendimento.
A primeira fragilidade é o paradoxo da capacidade. Ao mesmo tempo em que promete modernizar leis, digitalizar processos, implantar uma infraestrutura nacional de dados e disseminar o uso de inteligência artificial, o governo se compromete a reduzir em 8% o número de servidores federais e em 10% os gastos de custeio, além de diminuir o número de órgãos e unidades administrativas.
Cortar pessoal não é, em si, problemático. As administrações públicas acumulam funções obsoletas, duplicidades e estruturas que deixam de fazer sentido. O problema não está na meta de redução, mas na ausência de clareza sobre como ela será executada. Cortes lineares – 8% em todos os órgãos, por exemplo – costumam ser politicamente mais fáceis, mas administrativamente destrutivos: removem capacidade de áreas críticas enquanto preservam bolsões de ineficiência em setores menos visíveis.
O risco maior é que, sem sistemas robustos de avaliação de desempenho, os cortes atinjam as pessoas erradas. Em burocracias onde todos são avaliados como “bons” ou “muito bons”, onde não há informação confiável sobre quem entrega resultados e quem apenas cumpre protocolo, a tendência é que saiam justamente aqueles com competências mais valiosas – os que têm certeza de que conseguirão emprego na iniciativa privada. Ficam aqueles cujas habilidades são obsoletas ou específicas demais para o mercado, mas que são protegidos pela estabilidade.
A pergunta incômoda é: o governo alemão tem hoje um mapeamento claro de onde estão as competências críticas e onde estão as funções que podem ser eliminadas sem prejuízo? Sabe quais servidores trabalham em tarefas que a digitalização tornará desnecessárias e quais serão essenciais para implementar e manter os novos sistemas? O documento não responde. E, sem esse diagnóstico, a redução de 8% pode facilmente remover capacidade justamente nas áreas que mais precisarão de gente qualificada nos próximos anos – implementação de sistemas complexos, gestão de dados, redesenho de processos.
Isso não significa que o governo deveria esperar até ter um diagnóstico perfeito antes de agir. Reformas que exigem diagnósticos completos antes de começar costumam nunca começar. Mas significa que a agenda atual precisará, em versões futuras ou em documentos complementares, enfrentar essa questão de forma mais explícita: como garantir que os cortes preservem capacidade estratégica e removam funções que já não agregam valor? Como criar sistemas de gestão de desempenho que permitam decisões informadas sobre quem fica e quem sai? Sem isso, o risco de que a reforma destrua, inadvertidamente, aquilo que o Estado mais precisará manter é real.
A segunda fragilidade está na fuga das questões mais espinhosas sobre autoridade, carreira e centro de governo. A agenda alemã fala muito em processos, sistemas e plataformas. Fala pouco – ou de forma extremamente vaga – sobre quem decide o quê, como se muda a cultura de aversão ao risco que permeia a administração pública alemã, ou como se redesenha o topo da burocracia.
Não há, no documento, nada comparável a uma reflexão sobre a alta direção pública: como são selecionados os dirigentes que ocupam os cargos de chefia? Que incentivos eles têm para inovar ou assumir riscos? Como se quebra a endogamia de uma elite administrativa que se perpetua por décadas? Essas perguntas simplesmente não aparecem.
Também está ausente uma discussão séria sobre o centro de governo – a arquitetura de poder que coordena ministérios, resolve conflitos entre pastas e garante que reformas transversais não sejam sabotadas por interesses setoriais. Há menção a uma “nova interpretação do Ressortprinzip” – o princípio constitucional segundo o qual cada ministério tem autonomia sobre sua própria área. A ideia seria criar uma abordagem mais integrada, de “Whole-of-Government“. Mas o texto se mantém discreto sobre o que isso significa na prática: quem perde poder quando decisões são centralizadas? Como se resolve quando ministérios entram em conflito? Que estruturas garantem que o centro de governo tenha autoridade real para impor coordenação?
Tais indagações não encontram resposta, uma ausência que expõe as limitações do documento. Por ser a agenda de uma coalizão, e não uma revisão independente, o texto precisa equilibrar o rigor necessário aos tecnocratas com a ambiguidade necessária à política. O governo evitou deliberadamente tocar na redistribuição de poder interno para não mobilizar resistências prematuras. Embora pragmática, essa estratégia cria vazios críticos. Será fundamental que os próximos passos enfrentem essas questões estruturais; do contrário, teremos uma reforma que moderniza a fachada do Estado, mas preserva intacto o núcleo onde o poder opera.
A terceira fragilidade é a aposta na digitalização como solução quase universal. A narrativa oficial aposta no “Deutschland-Stack” – uma plataforma tecnológica nacional – e no princípio “once-only” como alavancas centrais de transformação. Há aqui um avanço importante: a ambição não é apenas digitalizar formulários em PDF, mas redesenhar integrações de dados e automatizar decisões onde isso for possível.
Ao mesmo tempo, o hiato entre a retórica e a realidade atual é grande. O próprio governo ainda comemora como conquista básica a substituição da exigência de assinatura física por formas digitais simples – um e-mail, basicamente – em muitos processos administrativos. Se o sistema ainda luta para aceitar um e-mail simples em vez de uma carta assinada, a promessa de “Law as Code” soa como ficção científica.
Existe uma tensão inerente na estratégia alemã: o desejo de sanar o passivo tecnológico e, no mesmo movimento, assumir a liderança digital global. Tal ambição impõe um desafio de calibragem. Ao comprometer-se com uma redução de 8% no funcionalismo, o governo implicitamente eleva a barra de exigência para a capacidade técnica instalada. O sucesso da empreitada depende vitalmente de que esse Estado mais compacto possua a inteligência interna necessária para desenhar soluções que rompam os silos burocráticos. A ausência dessa competência interna, num cenário de quadros reduzidos, levaria ao recurso habitual da terceirização para consultorias — um desfecho que o documento busca, em tese, evitar.
A quarta fragilidade diz respeito à forma de monitorar o que foi prometido. A agenda enfatiza que tudo será ‘transparente e mensurável’ e que o progresso será acompanhado ao longo da legislatura. Mas o desenho institucional desse monitoramento permanece concentrado na própria esfera política.
É verdade que o NKR e o Bundesrechnungshof (Tribunal de Contas) oferecem um acompanhamento independente em suas áreas – custos e eficiência. Mas reformas de Estado vão muito além de planilhas; envolvem mudanças em cultura organizacional e capacidades. Para essas dimensões, falta uma instância que exerça uma cobrança externa qualificada sobre a entrega da modernização – um papel de stewardship (zelo pela capacidade institucional) semelhante ao que Lord Maude imaginou para a Civil Service Commission no Reino Unido. Na Alemanha, talvez caiba ao Parlamento assumir essa postura mais altiva, garantindo que o monitoramento e avaliação das reformas não fique restrita ao próprio governo decidindo o que foi ou não feito. Quando o juiz e o réu são a mesma pessoa, a justiça tende a ser indulgente.
Há, finalmente, uma abundância preocupante de “mandatos de verificação”. O documento está repleto de compromissos de “verificar” se algo pode ser feito: verificar se a coleta de dados pode ser automatizada, verificar o uso de inteligência artificial em processos, verificar a possibilidade de pagamentos fixos. Em linguagem burocrática, “verificar” muitas vezes significa adiar. Um plano sério diz “faremos X até a data Y”; um documento político diz “vamos verificar a possibilidade de X”. A proliferação dessas verificações – muitas delas com prazo para meados de 2026 – sugere que a resistência interna ainda é enorme e que muitas dessas medidas podem morrer silenciosamente na fase de “análise de viabilidade”.
Um começo que importa
Apesar dessas falhas, seria um erro descartar a agenda alemã como mero exercício de marketing administrativo. Em termos de política pública, o simples fato de o país ter:
- um órgão dedicado à modernização do Estado, com mandato claro e orçamento próprio;
- uma agenda federal com metas quantitativas e projetos identificáveis;
- um acordo federativo com mais de 200 medidas concretas negociadas com os 16 estados;
- e um órgão independente que quantifica, ano a ano, uma dimensão relevante da reforma – o custo da burocracia,
significa que a modernização deixou de ser apenas um slogan para virar, ainda que com tensões, um programa de governo passível de escrutínio.
Isso não garante o sucesso. Mas desloca a conversa do plano das intenções genéricas para um campo em que, quatro ou cinco anos depois, é possível perguntar: as autorizações são emitidas mais rapidamente? As empresas gastam menos tempo preenchendo formulários? Os cidadãos percebem algum ganho concreto de tempo e previsibilidade ao lidar com o Estado? Essas perguntas podem ser respondidas. E, quando podem ser respondidas, alguém precisa responder por elas.
A estratégia de combinar vitórias rápidas com reformas estruturais também faz sentido político. Os projetos de curto prazo funcionam como provas de conceito: se o governo consegue unificar o registro de veículos em poucos meses, talvez consiga fazer mudanças maiores. E, ao gerar resultados tangíveis cedo, o governo compra paciência pública e margem de manobra política para enfrentar as reformas mais difíceis – aquelas que inevitavelmente encontrarão resistência de quem perde poder, autonomia ou privilégios.
Reforma, afinal, só existe quando altera a experiência de quem depende do serviço público – e quando redistribui, de algum modo, poder e responsabilidades dentro da própria máquina.
E o contraste incômodo com o Brasil
É justamente aqui que o caso alemão, com todos os seus defeitos, ajuda a iluminar uma fragilidade brasileira difícil de ignorar.
No Brasil, a retórica sobre “transformação do estado” é ambiciosa. O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos fala em um Estado “inclusivo, democrático e efetivo“, em novas capacidades, em cooperação federativa e em serviços digitais centrados nas pessoas. A carteira de iniciativas estratégicas organiza essa visão em objetivos, resultados-chave e projetos que cobrem desde patrimônio da União até empresas estatais e governo digital.
Agora, vejamos com cuidado aquilo que o próprio governo escolheu como métrica de sucesso. Um exemplo extremo, quase caricatural, é o Objetivo Estratégico 12: “Formar e desenvolver as competências dos agentes públicos”. O resultado-chave associado a essa ambição é, literalmente, “incrementar em 20% o número de certificados emitidos para agentes públicos federais, estaduais e municipais até dezembro de 2026”.
Certificados. Não evidências de que servidores passaram a fazer melhor o seu trabalho. Não redução de tempos de resposta em processos. Não melhoria mensurável na qualidade das decisões. Certificados emitidos. Como se a competência de um servidor público pudesse ser medida pela quantidade de cursos online que ele assistiu para ganhar um adicional de qualificação. Como se a emissão de papel – ou sua versão digital – fosse sinônimo de aprendizado real ou de melhoria no serviço prestado à população.
Ou tome-se outra métrica comum: “percentual de ações implementadas” nos projetos de gestão. A meta é executar 70% das ações planejadas. Mas o que conta como “ação”? Criar um grupo de trabalho. Revisar uma norma interna. Integrar agentes de supervisão em um sistema. Se a meta é criar o grupo, e o grupo é criado, a meta foi batida – ainda que o grupo nunca produza nada útil, ainda que a norma revisada não altere nada de substantivo, ainda que a integração dos agentes seja apenas burocrática. O sistema premia o movimento, não a direção. Celebra-se o ritual – fazer a reunião, emitir o relatório, preencher o formulário – enquanto a substância permanece intocada.
É claro que a Alemanha também corre o risco de se perder em indicadores de volume – número de portais, de procedimentos digitalizados, de leis revisadas. A diferença é que parte das metas centrais foi formulada diretamente em termos de custos de burocracia reduzidos em euros, tempo de resposta encurtado em dias e redução percentual de estruturas administrativas. São elementos que se aproximam mais de resultados que alguém pode experimentar.
Já no caso brasileiro, o descompasso entre o discurso – sofisticado, generoso nas referências conceituais, repleto de compromissos com inclusão e democracia – e a instrumentação concreta das metas revela uma espécie de “ritualismo administrativo”: mede-se aquilo que é fácil de contar, não aquilo que é mais importante mudar.
A fragilidade brasileira reside em confundir meio com fim. Certificado vira meta, quando deveria ser competência. Grupo de trabalho vira resultado, quando deveria ser solução de problema. Conta digital vira sucesso, quando deveria ser serviço sem atrito. Mede-se se a máquina está girando, não se está girando na direção certa ou sob regras diferentes.
Há também uma diferença de franqueza. A Alemanha, ainda que de forma tímida e envolta em linguagem técnica, pelo menos insinua que haverá perdedores: 8% menos servidores, 10% menos gastos de custeio, fusão de órgãos, centralização de autoridade no ministério de modernização com poder de veto sobre gastos de TI. São medidas que redistribuem recursos e poder. Nos documentos brasileiros, essas perguntas permanecem sistematicamente fora da página. Quem perde autonomia quando sistemas centralizados são impostos? Quem perde recursos quando os processos são simplificados? Que corporações resistirão e como serão enfrentadas? O silêncio sobre essas questões não é acidental – é estratégico. Evita-se o conflito para evitar resistência. Mas, ao evitar o conflito, evita-se também a transformação real.
Abrir o campo de visão
Isso não significa idealizar a Alemanha. A agenda de modernização alemã tem problemas reais de capacidade, de prazos e de desenho institucional. Ela aposta pesado em digitalização sem responder plenamente à pergunta sobre quem, dentro do Estado, terá tempo, preparo e incentivo para redesenhar processos profundamente arraigados. Ela define metas numéricas ambiciosas para redução de burocracia e de pessoal em um sistema federal complexo, onde cada mudança legislativa exige negociações demoradas. Ela deixa de fora questões centrais sobre como se forma, seleciona e incentiva a alta direção pública, e sobre como se reorganiza o centro de governo para que reformas transversais não sejam sabotadas por resistências setoriais.
Ainda assim, ela cria algo que, no Brasil, continua raro: um triângulo relativamente coerente entre política, administração e avaliação. Há um ministério com mandato claro (desafio o leitor a explicar as relações, no Brasil, entre ministério da Gestão, do Planejamento e a Casa Civil); há uma agenda aprovada em gabinete e debatida no parlamento; há um órgão independente que mede, com alguma precisão, uma parte relevante do problema – o peso das regras sobre a economia e a sociedade. E há uma aposta deliberada em gerar vitórias rápidas que sustentem politicamente as mudanças de longo prazo.
Talvez o ponto mais interessante, para quem observa de fora, não seja decidir se o plano alemão “vai dar certo”, mas usar esse exemplo para fazer uma pergunta incômoda em casa: quando falamos em “transformar o Estado” no Brasil, estamos realmente dispostos a vincular essa transformação a metas que mexam em poder, em estruturas e em incentivos – ou vamos continuar celebrando, como grande conquista, o aumento no número de concursos públicos?
A Alemanha, com todas as suas hesitações, pelo menos colocou algumas cartas na mesa. Criou uma estrutura, estabeleceu metas verificáveis, dividiu a estratégia entre ganhos rápidos e reformas profundas, e se expôs ao escrutínio de um órgão independente que conta o custo da burocracia ano após ano. O próximo movimento será descobrir se o país consegue converter essas metas ambiciosas em mudanças visíveis no cotidiano dos cidadãos.
No Brasil, talvez ainda estejamos na etapa anterior: a de decidir se queremos que a transformação do Estado seja algo que possa, de fato, ser cobrado – ou se ela seguirá sendo, sobretudo, uma promessa generosa em discursos e relatórios, enquanto a estrutura real de poder e ineficiência permanece intocada.