Uma das signatárias do manifesto “Destrava!”, divulgado na última segunda-feira pedindo urgência na reforma administrativa, a economista Ana Carla Abrão vê como um péssimo sinal a saída do secretário Paulo Uebel, responsável por formular a proposta — uma indicação de insatisfação do ex-assessor com a resistência no governo para avançar com essa pauta.
Em entrevista ao Globo, a ex-secretária de Fazenda de Goiás e hoje sócia da consultoria Oliver Wyman diz não se surpreender com a resistência do presidente Jair Bolsonaro ao tema, dado o seu passado corporativista, mas argumenta que é urgente a revisão das carreiras do serviço público.
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Por que avalia que a reforma administrativa é urgente?
Do ponto de vista fiscal, é uma reforma muito relevante. Mas eu sempre digo que a motivação principal para uma reforma administrativa é a melhoria dos serviços públicos. A maior parte da população brasileira depende do Estado para ter acesso a educação, saúde e segurança.
São pessoas que não podem pagar escola privada, não podem pagar planos de saúde, jovens cooptados pela criminalidade porque não têm alternativa de vida. Tem toda uma questão social que está vinculada ao fato de que o Estado brasileiro se tornou um grande reforçador da nossa desigualdade por não prover serviços de boa qualidade.
Do ponto de vista fiscal, também é relevante?
O gasto com pessoal, com salários de servidores, é o terceiro mais relevante do setor público. Quando a gente fala em reduzir o crescimento de gastos, tem que olhar para essa linha de despesa, que é muito relevante e é a única das três maiores que ainda não sofreu algum tipo de ajuste. A gente está dentro de um padrão de despesa de pessoal que não se justifica. Além da questão social e fiscal, ainda tem um terceiro fator que é o fato de que a gente precisa aumentar a produtividade da economia brasileira. Se não melhorar a produtividade do setor público, a gente não consegue melhorar a produtividade da economia brasileira, porque o setor público responde por 50%.
O ministro Paulo Guedes tem dito que o congelamento de salários dos servidores, incluído no pacote de socorro a estados, ajuda a mitigar essa urgência.
A medida, em si, foi necessária e é relevante. É inaceitável no momento em que o setor privado está demitindo, servidor público ter ganho real de salário. Ela é superimportante do ponto de vista fiscal, mas, acima de tudo, do ponto de vista moral. Agora, congelar salário e promoção não é reforma administrativa. Reforma administrativa é fazer uma revisão de forma estrutural em todas as leis de carreira que regem a relação do servidor com o Estado.
Que sinais a saída do secretário Uebel e a resistência de Bolsonaro à reforma passam?
Péssimos. O presidente nunca escondeu sua falta de apetite para uma reforma administrativa, o que é condizente com o passado corporativista dele. Ledo engano a gente imaginar que isso ia mudar em relação a tudo que ele defendeu ao longo da vida pública. Acho que o presidente não entendeu o que é reforma administrativa. Ele acha que é massacrar servidor público. Eventualmente, se ele se aprofundar no tema, quem sabe a saída do secretário tenha servido para abrir os ouvidos do presidente. Meu lado otimista pensa que isso pode acontecer. Meu lado realista encara o fato de que nós temos um presidente da República corporativista, que não vai entrar nessa agenda e já está em agenda eleitoral.
Apesar da narrativa de que a reforma não prejudica os servidores, não é importante reconhecer que haverá perda de benefícios?
Alguns perderiam, com certeza. Mas é importante lembrar que a reforma administrativa que o governo formulou e nunca chegou ao Congresso inclusive nem mexe com servidores atuais. Ela serve para novos concursos. Os atuais não iam perder nada, e eu, por sinal, não defendo essa reforma.
Como fazer uma reforma que ataque benefícios e proteja servidores mal remunerados, como professores?
É preciso resolver essas desigualdades. E não é mexendo na Constituição, é nas leis de carreira. Não pode ter mais chefe que chefiado. Hoje, 70% dos servidores estão no topo da carreira. Isso não funciona, e não tem quem bote a mão na massa. No exemplo da Educação: você sabe que professor público no Brasil ganha pouco. Mas, como não consegue aumentar o salário relevante na base, a gente começa a criar ações mitigatórias, como deixar o professor mais tempo fora de sala de aula, para ele complementar renda com outra atividade. Então, acaba sendo preciso contratar mais professor. Você tem muito mais professor do que precisaria, e todos ganhando mal.
Cálculo do economista Daniel Duque publicado pelo GLOBO mostra que, durante a pandemia, trabalhadores no setor privado receberam 21% a menos do que ganhavam antes da crise, trabalhando 25% menos horas. Já servidores públicos tiveram redução de carga de trabalho de 29% e perda salarial de apenas 3%. Isso ilustra o nível da desigualdade entre os setores público e privado?
Certamente! A pandemia não só escancarou nossas desigualdades sociais como, no caso do mercado de trabalho, agravou essa situação dual em que o trabalhador privado se vê sujeito às intempéries econômicas enquanto, no setor público, à blindagem da estabilidade se junta a proteção salarial. Inclusive, não houvesse o congelamento de salários e a interrupção na contagem de tempo de serviço (aprovados no projeto de socorro aos estados), teríamos observado ganho salarial e não essa pequena perda. Mas, mesmo assim, fica claro que essas disparidades precisam ser enfrentadas, pois, como em toda distorção, a conta é paga por alguém. Quando as distorções são financiadas com recursos públicos, a conta recai sobre a sociedade como um todo.
Estudo do Instituto Millenium (que acompanha o manifesto pela reforma) cita uma janela de oportunidade considerando as aposentadorias até 2034. A janela está ficando curta?
Está ficando cada vez mais curta, e a janela que eu vejo é outra. Dado que a gente entrou nesse processo de congelamento de salários, concursos, promoções e progressões, é o momento de aproveitar esse período de moratória, digamos assim, e fazer a discussão estrutural. Senão, a gente vai chegar em dezembro do ano que vem e abrir essa caixa num ano eleitoral e amplificar essas discussões. Se não tiver feito a reforma até lá, começarão a ser dados aumentos, promoções, concursos nas regras atuais. Aí, realmente, como se diz na minha terra, vai o boi com a corda.
Como manter a estrutura enxuta depois da reforma, considerando que essas regras se acumularam ao longo de anos?Se a gente faz essa reforma agora, junto com o desenvolvimento de novas tecnologias, consegue abrir espaço fiscal, investir, digitalizar a máquina, torná-la mais eficiente e reduzir o contingente de servidores. Você vai criando uma máquina mais racional e menos aberta a distorções. Nossos jovens hoje pensam em terminar a faculdade e ir para o setor público. Eles não pensam em empreender, porque o prêmio é alto: estabilidade, promoções, pouca cobrança sobre resultados. Quando você reforma e coloca as bases corretas e, em paralelo, investe num programa de digitalização, a roda gira para o outro lado.
Fonte: “O Globo”, 16/8/2020