Dizia-se que o Brasil não tinha caráter ou estilo. Afirmava-se que qualquer coisa se desmoralizava entre nós. Não havia pecado debaixo do Equador mas, como compensação, nada funcionava. Exceto o futebol, o carnaval e o jogo do bicho. Curioso que ninguém observasse que nesta admissão ia um enorme desmentido. O jogo do bicho revela uma criatividade rara no concerto das criações populares. Nele, como demonstrei num livro escrito com Elena Soárez, sublima-se o desejo de modernização de ricaços aristocratizados pelo imperador, com a pobreza aguçada no período pós-abolição. Isso para não falar da inusitada humanização dos números através dos bichos. O carnaval relativiza rindo a seriedade hipócrita dos superiores, propondo uma trégua da mendacidade pátria. E o futebol, nascido na admirada Inglaterra, confronta o desejo de vencer, com regras que valem para todos, obrigando a uma calibragem entre meios e fins. E como em sociedade nada se perde, não ter estilo é ter um grande estilo.
Com a crise somos obrigados a enxergar o estilo brasileiro. Ele se torna visível no futebol onde o “jogo de cintura” conjuga técnica e criatividade. Evitamos bater de frente, preferindo a “bicicleta”, a “pedalada”, a “paradinha”, o finge que vai, mas fica. Enfim, todos esses descendentes da malandragem, expressivos da dificuldade de aceitar com o limite e o proibido. Se o estilo é a manifestação de uma singularidade, o nosso estilo tem como base o ideal de aproveitar a vida, de ficar rico de uma só tacada e de supor que, no nosso caso, a lei será aplicada de modo diferenciado.
Pena que essa experiência malandra não possa mais ser aplicada com a mesma legitimidade e desfaçatez, em todos os campos da vida social. Se antes do Plano Real era possível reinventar a economia, criar novas moedas e, em nome do povo, brincar com a inflação, hoje isso é impraticável. O plano teve o mérito de ser o primeiro ponto de confluência concreto entre a “esquerda” e a “direita” no Brasil. Sem ele, estaríamos enfrentando a crise mundial com receitas provavelmente bipolares, o que só faria aumentar a nossa predisposição ao confronto político, com sua fácil retórica acusatória, pessoal e autoritária. Graças ao Plano Real, temos discernimento entre o que é uma questão econômica e financeira; e o que é um problema político ou jurídico. O controle do econômico, dentro de um quadro liberal, trouxe uma inevitável demanda de fazer o mesmo no plano político e em outras esferas da sociedade. Se ordenamos a moeda, os banqueiros e o mercado, porque não podemos fazer o mesmo com os políticos?
A experiência de sucesso tendo como pano de fundo a crise, leva a uma transformação do sistema. Não basta definir o Brasil por ausências, mas de aperfeiçoar o estilo vigente, enfrentando e sabendo que se pode vencer, os seus pontos falhos e cegos.
Não há melhor exemplo disso do que os mijões. De repente, descobrimos que o esquecido carnaval de rua é ótimo, mas com ele vêm os mijões que empestam nossas ruas e constrangem a nossa decência. Sacamos que a questão dos mijões não se resolve somente com a presença maciça de banheiros químicos porque eles os destroem impiedosamente. É preciso entender os mijões para acabar com a mijada. O estilo brasileiro afirmava que com uma nova Constituição, a “cidadã”, íamos engendrar imediatamente cidadania. Vale lembrar que não há França sem franceses; e não pode haver cidadania sem cidadãos que a honrem. Destruir armas não acaba com a violência, do mesmo modo que, na “sereníssima república” de Machado de Assis, não se consegue honestidade eleitoral mudando a forma das urnas.
É preciso que, antes das urnas, das moedas e dos banheiros químicos, tenha-se a noção dos estilos e costumes. Proclamar a República não foi suficiente para corrigir a desigualdade aristocrática do Império. Se mijar é um ato expressivo de masculinidade, então será preciso fazer algo mais efetivo do que reclamar dos mijões. Uma multa ao alcance de todos seria talvez mais adequado (como no passado) do que esses rituais policialescos e jurídicos complicados que não servem para nada. Exceto para garantir aos mijões o nobre direito de mostrar que têm bilu e que são mesmo homens, pois mulher não mija na rua. Se assim fosse, todos usariam banheiro!
Em suma: se mijar na rua tem a ver com ser homem; se a política não é uma atividade destinada ao bem do País, mas a permanência no poder e ao enriquecimento pessoal, com oscilações rápidas entre esses dois objetivos, de nada vale mudar o nome da moeda ou repetir que o Congresso Nacional é uma instituição crítica num sistema democrático. Continuaremos a promover e a assistir a essa grande mijada nacional, tentando corrigir o mau hábito com o aumento de banheiros químicos. Não dá mais para enfrentar o mal com remédios errados sem uma calibragem entre meios e fins, como é característico do nosso bom e velho estilo. Pois ele retorna na forma de uma mistura da palhaçada com a hipocrisia.
O Estado de Sp – 11/03/2009
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