Quando Max Weber fala de poder, ele faz distinções importantes para a compreensão da democracia. Um regime político centrado numa premissa revolucionária, pois é o único que periodicamente confirma pessoas em seus cargos, o que produz uma instabilidade estrutural paradoxalmente regulada.
Tanto isso é verdade que quando se dá um golpe, fala-se em tudo, menos em eleição. Esse grande rito garantidor de mudanças por dentro, esse formidável teste que une pessoas comuns a altos cargos necessários à administração pública. Política e sociedade estão juntas nas democracias e divorciadas nas ditaduras.
Weber é claro quando distingue poder de dominação. Algo básico para entender o governo dos humanos pelos humanos — esses bichos cujo programa é não ter programa sendo, por isso mesmo, dependentes do que Weber chamou de legitimação. A dimensão que domestica o monopólio da força, justificando-a e racionalizando-a numa autoridade, o que evita o caos ou, como dizia um outro clássico, a “guerra de todos contra todos”.
A dominação comunica quem manda e quem obedece. A passagem da força bruta para a dominação mediada e racionalizada por um sistema religioso ou jurídico é o que chamamos de sistema cultural — uma ordem capaz de lidar com suas diferenças, tomando-as como “naturais”.
Se o rei é ungido por Deus e se não existe dúvida sobre a sua existência e de que as relações humanas são um produto de ancestrais míticos que as criaram e engendraram os “costumes” com os quais vivemos, então a obediência não é devida à pessoa, mas ao papel que as pessoas desempenham, os quais têm uma chancela como divina ou legal.
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O poder tem sempre o seu lado arbitrário e opressivo, mas a dominação é fundada em normas e gestos originários de narrativas sagradas ou de códigos ancestrais ou de leis naturais, fundadores da ordem humana. É assim que ela escapa da história e passa a impressão de eternidade.
O poder depende da força. A dominação requer acordos. “Tomar o poder”, como querem os imbecis, é uma banalidade; atingir — entretanto — um sistema razoável de dominação requer senso de justiça entre o mandante e o obediente. Pois entre eles existem normas e rituais que legitimam suas diferenças e podem revertê-las.
Tudo isso nos leva além de Weber, para Arnold Van Gennep — o revelador da estrutura elementar dos rituais, essa base comportamental da legitimidade.
Ele diz:
1. Os estágios críticos do ciclo de vida que começa com o nascimento, passa pela puberdade, casamento, paternidade e, finalmente, chega ao fim com a morte; ainda que estejam relacionados a eventos fisiológicos, são definidos socialmente;
2. A entrada e a saída desses estágios críticos são sempre marcadas por rituais e cerimônias não apenas nas “sociedades primitivas”, mas também na civilização cristã e nas civilizações da antiguidade;
3. Esses “ritos de passagem” incluem sempre três fases: separação (que remove os sujeitos do seu campo social rotineiro), transição ou margem e, finalmente, incorporação num novo campo e papel social.
Nas democracias, essas passagens ocorrem de tempos em tempos naquilo que chamamos de eleição — esse grandioso processo cerimonial no qual legisladores e executivos são substituídos numa ampla competição determinada pelo “voto”. Por uma promessa representativa de lealdade e confiança.
Neste sentido, a eleição é um ritual cujo objetivo explicito é a renovação — essa marca registrada do viés democrático. Ela é também uma ocasião na qual a sociedade pode reclamar aquilo a que aspira e ver-se a si mesma como um feixe de opiniões divergentes. Pode também servir como correção para governantes que traíram a confiança dos seus eleitores.
Foi exatamente isso a que assistimos tranquilamente neste último domingo e que iremos assistir novamente no “segundo turno”, quando será finalizada a associação de um candidato (que passa) ao cargo de presidente da República (que permanece).
Temos hoje uma conjuntura eleitoral marcada por divergências somadas a ressentimentos que impedem de agir com a tal racionalidade que o campo do político dizia possuir na sua definição moderna. Que Deus, esse representante de tudo o que tentamos enxergar, nos ajude e nos livre da violência, da extorsão e da impostura em nome da democracia.
Fonte: “O Globo”, 10/10/2018