Lembro-me, como se fosse hoje, de quando entrou a circular o “Jornal da Tarde” (JT); com os primeiros exemplares que ganharam as ruas o jornal adquiriu sua reputação, tamanha a diferença entre ele e os muitos até legendários periódicos editados no Rio de Janeiro e em São Paulo, sem falar nos dos Estados; não se confundia sequer com o “O Estado de S. Paulo”, de cuja ilharga se despregara; seu perfil era novo, salvo quanto à filosofia de ambos, pois a ambos era comum. O “Estadão”, com suas cicatrizes havidas em situações inenarráveis e a altivez centenária a enfrentar novos desafios, continuava a ser o que sempre fora, fazendo lembrar um cedro majestoso. O JT começava a vida a espargir talento e graça, com prosa corrente e concepções elegantes, enfim, com finura e arte em um mundo que mudava todos os dias.
Quando todas as folhas disputavam milímetro a milímetro os espaços, o JT deixava vazios desde a primeira página a encher de vozes os mudos espaços desocupados. Não sei por que o jornal me fez lembrar um breve ensaio, menos de cem páginas, de um homem de letras moço e já consagrado, hoje quase esquecido, Ronald de Carvalho, intitulado Rabelais et le Rire de la Renaissance. Guardadas as devidas proporções, também um riso parecia ouvir-se até nos espaços vazios distribuídos pelas sisudas páginas dos melhores periódicos. E, como as coisas boas e belas também se apagam, é triste o dia em que se extingue um jornal inovador e fecundo.
Enquanto isso, a liberdade de imprensa sofre penas a que está sujeita na Venezuela, Equador, Argentina, sem falar em Cuba, como penou entre nós, durante anos, e ainda agora não faltam os que pretendem a “regulação dos meios de comunicação”.
Os caminhos da vida me foram afastando de muitas coisas, inclusive a de acompanhar jornais e jornais da melhor qualidade, até ter a triste notícia que anunciava o iminente encerramento do JT.
O termo vital de um jornal como foi o “Jornal da Tarde” tem a plangência de finados, tanto mais quando ocorrido no maior Estado da federação econômica e culturalmente, assim como em valores nos mais variados setores do saber humano; qual a explicação? De mais a mais, se isto ocorre em São Paulo, que se pode esperar em outros de notórias carências?
Eu teria observações a acrescentar, mas prefiro reproduzir os períodos finais do editorial “O JT sai da cena”, que “O Estado de S. Paulo” estampou no dia em que o “Jornal da Tarde” emudeceu.
“(…) No momento em que não só o jornalismo, ferramenta essencial da democracia, mas o pensamento escrito como um todo se debatem novamente numa crise que é, essencialmente, uma crise universal de desajuste de velocidades, vale a pena nos determos mais uma vez nesse aspecto que, para o bem e para o mal (quando a vantagem do tempo de processamento lhe foi suprimida), definiu a história e a trajetória do Jornal da Tarde.
(…) A submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo devolve a humanidade a uma crescente incapacidade de pensar e vai reduzindo a vida a uma sucessão de reações automatizadas de sobrevivência onde somos nós que, em bando, servimos às máquinas e não elas que nos acrescentam à individualidade, à segurança e ao conforto material ou espiritual.
Superar a barbárie e dar a cada homem as rédeas do seu próprio destino é o objetivo da democracia. O jornalismo está a serviço dela e esta, há 137 anos, tem sido a casa do jornalismo.
É nossa a responsabilidade, agora discutindo o papel central que nós próprios temos tido na construção dessa nova Babel, de contribuir para deter essa voragem e devolver aos homens o grau possível de controle sobre suas vidas.
O JT fez parte desta obra ao abrir novos caminhos. Cabe-nos continuar a percorrê-los.”
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