O século XIX conferiu ao gênio qualidades divinas. Fez da biografia dos homens ilustres ostentosa mitologia. À véspera do cientificismo asseguraria a continuidade do culto aos deuses da mitologia após convertê-lo em devoção aos santos e mártires da Igreja de Roma. Mas o culto prestado ao gênio, e ao herói – trágico ou romântico – recolheu-se às páginas da História. Ao arrepio das virtudes épicas dos “varões assinalados”, a glória sujeita-se hoje às vicissitudes do acaso e ao tempo ocioso das emissões via satélite.
Meteoros nos meios de comunicação, os super-homens são produtos da mídia. Já se disse, por isso, que coube a Carlyle enterrar os últimos herdeiros dos heróis da Antigüidade.
Num estudo sobre Dickens, Chesterton afirmava que a veemente exaltação do grande homem levara Carlyle a destruir a essência do heroísmo. À leitura do clássico On heroes and Hero-workship (1841), somos forçados, no entender de Chesterton, a perguntar-nos, em sobressalto: “Serei forte? Serei fraco?” Diante dos eleitos, a resposta só poderia ser: “Somos, sim, todos, fracos. (1)”
Tão onerosa responsabilidade volta a desafiar-nos no século XXI. Vemo-nos diante da força niveladora da sociedade democrática e da extrema mobilidade das classes sociais: o caráter instável das relações urbanas, a labilidade do êxito, vinculado às oscilações da Bolsa, às manchetes da imprensa e às notas mundanas reduziram a imortalidade a “celebridade” e, a calamidade, a fotojornalismo…
A desintegração da família, o êxodo rural, o desaparecimento dos patriarcas e dos clãs, a industrialização da fama pela publicidade, tanto como a insignificância dos líderes e modelos, desnorteiam a quantos buscam, no quadro político, na magistratura, no meio artístico e social, as virtudes que empolgam e arrastam.
Num estudo sobre o conceito de honra na sociedade mediterrânea, J. G. Peristiany explica que a fragmentação da sociedade moderna destruiu a ordem hierárquica definida causando “profunda perplexidade na juventude, e [dando] origem a numerosas ambigüidades”.
Inspirado na plenitude do poder, o ideal de hombria imbui-se de mística. É natural. Tanto se manifesta nas arenas, picadeiros, cavalhadas e rodeios, como nos anfiteatros, tribunas e púlpitos, onde a retórica arrebata.
Embora excite a euforia e o arrebatamento dos sentidos, o ideal patriótico não incita ao egoísmo nem sobreleva o indivíduo à fatuidade ostentatória: na guerra, como nas conspirações e revoluções, instiga à luta e à audácia. É “o amor da pátria, não movido de prêmio vil”, de que fala Camões, “mas alto e quase eterno” (Lusíadas, I, 10). Seu ímpeto coíbe toda veleidade: eleva e conforta.
Assim deve ser. E é. De fato. Em face do sinistro, ou da circunstância gloriosa, dono do próprio destino, o homem-macho assume sua condição. Responsável por seus atos, consciente do seu dever, é chamado a participar da História. Eis o que significa o machismo.
Sua melhor definição? O exercício da bravura.
Nos países altamente civilizados, onde há relativa distribuição da riqueza e grande possibilidade de emprego da energia criadora, dificilmente se registra a irrupção do heroísmo compulsivo. O culto da força, do machismo compulsivo e exibicionista e da virilidade febril comparece, com freqüência, nas sociedades em formação. Surge também nos momentos de definição da nacionalidade, nas encruzilhadas históricas e nas crises de expansão geográfica, quando urge a atuação dinâmica.
Sob os auspícios do Renascimento, sua mais legítima cristalização ocorreria durante a Conquista da América: demonizada pela leyenda negra ou mitificada na gesta onímoda dos conquistadores – a mais formidável epopéia dos tempos modernos ainda enerva a espinha dorsal do continente, da Patagônia à solidão do Novo México.
É força convir: a memória do centauro ibérico – a figura mítica do conquistador -, não se esgota nos anos da Conquista: transmite-se, exaltante, no legado transmitido à sua descendência. Seu patrimônio de valentia, vigor, sagacidade e – por que negá-lo? – de cupidez e violência, dissipam-no, com abundância, seus principais herdeiros: seja na figura do vaqueiro ou vaquero, do tropeiro ou do llanero, do huaso , do gaúcho ou gaúcho, do peão ou do cowboy…
Nenhum deles se esquiva ao desafio da circunstância. E a ele reagem, sempre, com insolência e temeridade. Poucas famílias humanas apresentam, como a desses cavaleiros, tão grande soma de traços comuns: identificam-nos a mesma ética e igual obediência a singularíssimo cânon de vida. Rubén Darío tinha razão: “Há mil filhotes soltos do leão espanhol!”.
Inspiradas no anelo romântico de afirmação da autonomia e da maioridade nacional, as guerras da independência promoveram, na América espanhola, o ressurgimento do hombre-macho: das cinzas do centauro ibérico surgiria o soldado aguerrido, tenaz. Uma das mais eminentes personalidades do continente, o libertador Simón Bolívar, encarnaria, no seu tempo, as virtudes excepcionais do condutor de povos: indiferente à virilidade factícia e à ostentação de altivez, ninguém mais homem que ele – redentor iluminado e construtor de nacionalidades.
Nessa era de contagiante e contagiosa febre de liberdade, quando o ideal da “americanería andante” ainda entusiasmava os jovens, o lírico e franzino José Martí renderia tributo ao heroísmo compulsivo. No afã de dar prova do seu engajamento, marcha para o sacrifício em nome da pátria: prefere imolar-se a ser chamado “o lírico da revolução cubana”.
Na iconografia bélica da nossa América têm lugar muito principal as tropas de gauchos miseráveis, com lanças improvisadas, laços, boleadoras e facões, convocados a expulsar da Argentina, sob o comando do caudilho Guemes, o exército realista. Onde encontrar empresa mais propícia à expansão de sua natureza indomável?
Também no México, caberia a los de abajo, indígenas e mestiços humildes, a reforma da sociedade colonial. A eles se deve a instauração da nova ordem, imposta pelo poder revolucionário. Juárez, Zapata, Morelos forjaram, gloriosamente, a imagem ideal que cada mexicano cria para si mesmo em transferência compensatória.
O he-man – quem melhor representa, nos Estados Unidos, o hombre-macho de origem ibérica – aparece entre 1820 e 1830. Vive-se, nas ex-colônias inglesas, a hora e a vez da afirmação nacional. Com Andrew-Jackson no governo (1828-1836), inauguram-se formas exemplares de conduta: ao aristocrata do litoral atlântico e ao poderoso senhor de escravos da Virgínia e da Nova Inglaterra sucede o homem do bosque – o woodman. Opõe-se ele ao dandy inglês, empomadado, fútil e fraco, cujos modos europeus e cujo sotaque de Oxford destoam no áspero cenário americano. O woodman tem muito do bon sauvage primitivo, forte e ingênuo: veste-se de peles, alimenta-se frugalmente e… não bebe chá; bebe café. Para desespero dos britânicos.
Os nacionalistas encarregaram-se de convertê-lo em figura mítica: símbolo do caráter e do valor do povo que conseguira criar, na terra bruta, a mais admirada e temida nação do planeta.
O machismo, note-se bem, não tem origem étnica. Nem informa apenas as vidas de heróis dignos do panteão. Pode até manifestar-se na vida dos santos. Mas ninguém, em sã consciência, confundirá piedade com machismo. Em virtude, é certo, da acepção com que se emprega o termo. Torna-se mais fácil identificá-lo no gesto e na fibra de um Cortés e de um Bolívar, de um Juárez ou de um San Martín, de um Davy Crockett e de um James Bowie, de um Tiradentes ou de um Caxias, de um Fidel e de um Che Guevara, do que no sacrifício de um pálido e magro poeta, como José Martí, ou de religiosos como Anchieta, Camilo Torres, Dom Oscar Romero, São Maximiliano Kolbe …
Denuncia-se igualmente, entre os bad good men, na ferocidade sertaneja do índio Afonso, personagem real do romance do mesmo título, de Bernardo Guimarães, como na truculência de Facundo Quiroga, o sanguinário caudilho dos pampas, ou no comportamento brutal de Lampeão.
Há, no entanto quem defenda a origem hispânica do machismo louvando-se no exemplo do Cid Campeador, em quem se celebra a excelência da honra, superior à fidalguia e aos atos façanhudos de coragem.
Apesar da importância do código de hombria, divulgado pelo comportamento do Cid, não se concentram nele as virtudes nucleares da virilidade. Há varões e varões. E o seu culto alonga-se no tempo. Podemos assinalar-lhe a presença nas páginas das sagas nórdicas, no fabulário do Reno, nas velhas lendas germânicas, resgatadas por Wagner. Próximos de nós, na Idade Média, os cavaleiros andantes arriscavam a vida na defesa da honra, em prol dos injustiçados, das viúvas e dos órfãos ou, ainda, na expectativa dos favores de uma bela dama. Não nos esqueça o Cavaleiro da Triste Figura – o bravo Dom Quixote.
Atente-se, porém: o rígido sistema moral e teológico da época fundava-se na prática das virtudes. E a virtude ungia, aos olhos medievais, o justo e bom varão.
Movidos por firme disposição ética, os cruzados aguerriam-se à luta contra os infiéis. Isto é, os mouros. Esses, por seu turno, partiam em guerra santa. Convencidos, todos, de que a dignidade do homem se regia pela observância dos preceitos cristãos ou muçulmanos, procuravam exercê-la, virilmente, nos campos de batalha.
Ser homem implicava, portanto “esforço, fortaleza e desprezo da morte”. Os livros de cavalaria incitam à obediência desse tríplice mandado. “O valer mais”, “o ser bom” e “o ser melhor” – “assunto individual absoluto”, segundo Pío Baroja – constituíam-se em ideal social.
Só a dominação árabe, de mais de sete séculos, traria à Península Ibérica o conceito sexista do machismo como privilégio daquele que o detém. Procede dessa época a estima da virilidade que se atesta na posse e domínio da mulher. Ou, como se proclama, de várias mulheres… As casas chicas, “sucursais”, “filiais”, de amantes, concubinas e queridas seriam, portanto, herança moura. No serralho e no nosso gineceu, seus melhores exemplos.
A imaginação popular confundiu, pelo que se vê, donjuanismo e machismo, a exemplo do que ocorrera a truculência e machismo, violência e machismo. Ao desprestigiar o bem nascido culto da hombria, resgataram-se da barbárie mecanismos perversos e abusivos em que se exaltam a força brutal, a truculência e o sadismo (2).
No trato com a mulher, vincou-se, expressamente, a diferença entre os gêneros na celebração do fenômeno biológico e na prepotência sexual. Mas… aprenda-se! A biografia amorosa de Don Juan, escrita por Tirso de Molina no Século de Ouro, não garantiu ao herói a desejada certidão de virilidade. Muito pelo contrário…
O varão perfeito – leia-se o ensaio de Gregorio Marañón sobre o donjuanismo – resolve seu instinto de posse não em muitos amores, mas em um, um apenas, eficazmente rico para enaltecer-lhe a masculinidade. É o narcisismo latente que compromete e diminui a diferença sexual de Don Juan. A fome de amor e a insatisfação que o transformam no “burlador de Sevilha” patenteiam-lhe a falência como homem, viril e inteiro.
Cuidem-se, portanto! A virilidade não é apanágio de Dom João, mas virtude própria de Otelo, amante apaixonado de uma única mulher…
Para a celebração da hombria. Dia da Mulher, 8 de março de 2007
(1) Releiam-se, para comprová-lo, os versos de “I-Juca-Pirama, VIII”: “Tu choraste em presença da morte? / Na presença de estranhos choraste? / Não descende o covarde do forte; / Pois choraste, meu filho não és!” E releia-se, também, a “Canção do Tamoio, I, II”: “Não chores, meu filho; / Não chores, que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar! / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos, só pode exaltar.// Um dia vivemos! / O homem que é forte / Não teme da morte; / Só teme fugir “ (Poesias completas de Gonçalves Dias. Prefácio de Josué Montello. Rio de Janeiro, Edições de Ouro,1965, p. 411; p.419.
(2) O que nos permite incluir entre os herdeiros do mito do Centauro os herdeiros do mito Caim: tanto os bad good men como os bad bad men: serial-killers, jagunços, membros de milícias e de grupos de extermínio e mais expoentes da mídia escrita e falada. Haja vista a volumosa correspondência que recebem de “coroas” e donzelas em flor, homicidas e criminosos confessos, condenados e encarcerados. E que dizer dos ditadores – “homens de fibra” para muitos? Polpotes, Stalins, Hitlers, Milosevichs et caterva??
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