A epidemia do coronavírus – a pior dos últimos cem anos – terá profundas consequências sobre um mundo globalizado, sem lideranças alinhadas e pouco solidárias entre si. O impacto econômico e social vai ser profundo, com o custo recaindo nos mais pobres, fracos e idosos e em países menos preparados e desenvolvidos.
Os efeitos sobre os países e sobre a economia global estão sendo sentidos e deverão agravar-se antes de melhorar.
Como a geopolítica global poderá ficar afetada pela epidemia? O que poderá mudar no cenário global?
Duas observações iniciais. A crise atual mostrou que as fronteiras nacionais desapareceram com as facilidades do transporte aéreo e o imediatismo das comunicações. E que as políticas econômicas domésticas estão intimamente influenciadas pelo que acontece no resto do mundo. Nenhum país ou continente é uma ilha. Por outro lado, a extensão e a repercussão da crise, em larga medida, deriva do peso da China na economia global. No inicio da década, quando se disseminou a Sars, o país representava 4% da economia global, hoje representa 17%. A China é a segunda economia mundial, o maior importador e exportador do mundo e, para culminar, transformou-se num centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor.
Quais as consequências na relação entre os EUA e a China, as duas superpotências atuais? Nos últimos anos cresceu a competição entre os dois países pela hegemonia global no século 21. Os EUA, ao se isolarem e ampliarem ações confrontacionistas, protecionistas, nacionalistas e xenófobas, dificultam a interdependência dos países, como ocorre com a globalização. Enquanto os EUA apontam a China como adversária estratégica e criticam o governo pela condução da epidemia (vírus chinês), Beijing, ao invés de fechar as fronteiras, como fez Washington, favorece a abertura e a ampliação do comércio externo e manda médicos e equipamentos para a Itália, a Espanha e o Brasil a fim de ajudar a combater o coronavírus. A guerra fria econômica, a nova fase da confrontação, evidencia-se pela iniciativa chinesa da Rota da Seda, pela competição nas redes 5G e por conflitos sobre propriedade intelectual e inovações tecnológicas.
A pandemia poderá também ter efeito relevante no cenário interno dos dois países com consequências geopolíticas. Xi Jinping disse que caso a epidemia se prolongue haverá o risco de instabilidade econômica e social no país. A maneira como, de início, Donald Trump conduziu a crise epidêmica em seu país foi muito criticada e sua popularidade caiu. As prévias do Partido Democrata vêm definindo Joe Biden como o candidato contra Trump, com apoio do centro moderado. Caso essa tendência se firme, pela primeira vez seria possível pensar numa derrota do atual presidente. O resultado da eleição, em novembro, poderá ter efeitos importantes na geopolítica global caso haja uma mudança da atitude do governo de Washington em relação ao mundo.
Outra questão é como países e empresas reagirão para reduzir sua dependência do mercado e da produção de partes e componentes chineses nas cadeias produtivas. A tendência poderá ser uma gradual redução dessa dependência e alguns países mais preparados e organizados, como o Vietnã e alguns outros asiáticos, poderão sair ganhando com investimentos para substituir a China. Em médio prazo, a projeção externa das grandes economias vai depender de sua base produtiva nacional e de sua competitividade.
A estabilidade política e econômica global poderá ser significativamente afetada pela vigilância biométrica, que poderá vir a ser implantada para evitar epidemias futuras. A preocupação com a saúde poderá levar à invasão da privacidade, com possíveis reflexos em políticas totalitárias. Quanto à dramática queda do crescimento dos EUA e da China, as projeções apontam para uma redução norte-americana de 4% no primeiro trimestre e 14% no segundo. Para a China as estimativas de crescimento não são maiores que 3,5% para 2020. Caso os EUA entrem em recessão e as projeções sobre a China se confirmem, não se pode afastar a possibilidade de recessão e, no pior cenário, de uma depressão, talvez mais dramática que a de 1929, por não ficar limitada ao setor financeiro. Como os países emergentes, produtores agrícolas, sairão de um cenário tão dramático como esse?
Mais de Rubens Barbosa
5G, decisão estratégica
Novos ventos no Planalto
Retomando o diálogo com a Argentina
A Europa está debilitada pela saída do Reino Unido e viu a situação humanitária, social e econômica agravada pela crise em alguns países, como Itália e Espanha. Em cenário dramático como o atual, é possível prever que o continente sairá com seu poder relativo diminuído.
O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, terá de se ajustar rapidamente à nova geopolítica global, sob pena de perder mais uma vez a oportunidade de se projetar como potência média em ascensão.
Em outros momentos da História, movimentos tectônicos transformaram o equilíbrio de poder entre as nações e os rumos da economia. O mundo pós-coronavirus deverá emergir com novas prioridades e com um novo cenário geopolítico, com a Ásia – em especial a China – em melhor posição para ocupar um crescente espaço político e econômico.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 24/3/2020