Não é falsa, mas gera pouca luz a tese predominante sobre as motivações originais da política externa do governo Lula. Essa tese assegura que a política externa inaugurada na primeira posse de Lula foi concebida como uma compensação “de esquerda” à política econômica ortodoxa capitaneada por Antonio Palocci e Henrique Meirelles.
As coisas são mais complicadas. Numa ponta, a substituição de Palocci por Guido Mantega introduziu uma ambivalência na política econômica, que agora combina um núcleo ortodoxo com iniciativas orientadas pelo programa do capitalismo de Estado. Na outra, a política externa sofreu uma inflexão sutil, que acentua suas inclinações antiamericanas. A crise em Honduras, a visita do iraniano Mahmoud Ahmadinejad e a aprovação parlamentar do ingresso da Venezuela no Mercosul delineiam os contornos de um novo cenário.
Na montagem de seu primeiro governo, Lula entregou nove décimos da política econômica aos liberais ortodoxos, deixando apenas o feudo do BNDES ao grupo nacionalista ligado a Carlos Lessa, que teve vida curta. A política externa, em contraste, foi dividida equitativamente entre os ultranacionalistas, representados pelo secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e a corrente majoritária petista inspirada pelo castrismo e personificada no assessor presidencial Marco Aurélio Garcia. O ministro Celso Amorim, um mestre da maleabilidade política, da dissimulação e do equívoco, ficou encarregado de administrar a coalizão de interesses, que só é estranha na superfície.
A ponte entre as visões de mundo dos dois grupos é constituída pelo antiamericanismo. A esquerda bafejada pelo castrismo norteia-se por uma caricatura da teoria do imperialismo que substitui o sistema de relações da economia mundial pelo “império americano”. Os ultranacionalistas, cujas referências históricas formam um panteão que conecta Getúlio Vargas a Ernesto Geisel num mesmo “projeto nacional”, encaram os EUA como a fonte principal dos valores odiosos de democracia política e liberdade econômica. Uma política externa consistente, mesmo se abominável, pode emanar de tal coalizão.
Lula, hoje todos sabem, não é uma rainha da Inglaterra. Ele arquitetou seu governo como um caleidoscópio de grupos de interesses, mas nunca renunciou ao exercício do comando efetivo. Amorim qualificou-o como o “Nosso Guia”, lançando mão de um panegírico ridículo para produzir uma asserção verdadeira. O presidente, um provinciano incorrigível, jamais nutriu interesse pela política internacional, interpretando a política externa essencialmente como um instrumento para a edificação de sua imagem de estadista. No primeiro mandato, com essa finalidade, o “guia” definiu como meta prioritária a ascensão do Brasil à condição de membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU.
Lula cultivou uma relação pessoal com George W. Bush e o Brasil atendeu a um pedido expresso da Casa Branca para liderar a missão da ONU no Haiti, oferecendo uma solução à crise aberta por um gesto aventureiro dos neoconservadores americanos. O Itamaraty cuidou de amenizar a crítica brasileira à geopolítica de Bush no Oriente Médio e de não fazer nenhuma menção significativa aos escândalos de direitos humanos em Abu Ghraib e Guantánamo. O presidente e o ministro Amorim alimentavam a esperança de retribuição, na forma do apoio de Washington ao ingresso definitivo do País no CS. Mas, previsivelmente, os EUA decidiram não imolar sua política para a ONU no altar da obsessão do Brasil.
No segundo mandato, em virtude do fracasso daquela pleiteação, Lula afrouxou as rédeas que cerceavam o impulso antiamericanista da coalizão de política externa. A virulência desse impulso não diminuiu, mas cresceu, com a troca de comando na Casa Branca. O aparente paradoxo decorre de um temor fundamentado: enquanto as diretrizes de Bush serviam como contraponto ideal para as manifestações de apreço do Brasil a tiranos de diversos matizes, as de Obama tendem a restaurar a credibilidade dos valores políticos defendidos pelos EUA.
A alardeada “química pessoal” entre Lula e Bush deu lugar a uma crescente hostilidade retórica contra os EUA, expressa no tom arrogante das críticas à cessão do uso das bases militares colombianas, e a gestos antes impensáveis: a conversão da embaixada hondurenha em tribuna para Manuel Zelaya, o apoio explícito à duvidosa reeleição de Ahmadinejad e a proclamação de confiança no suposto caráter pacífico do programa nuclear iraniano. Nesse curso, pouco antes da visita de Arturo Valenzuela, novo secretário-assistente para as Américas, Marco Aurélio Garcia manifestou publicamente a “decepção” brasileira com a política de Obama para a América Latina – uma iniciativa que desafia as convenções da diplomacia entre países amigos.
O ato mais recente na escalada triunfante do antiamericanismo foi a admissão pelo Senado do ingresso da Venezuela no Mercosul, uma decisão de amplas repercussões, derivada de intensa pressão do Executivo sobre a sua base parlamentar. A presença de Hugo Chávez implicará a “morte” do Mercosul original, como anunciou certa vez o próprio venezuelano, e sua conversão numa plataforma de denúncia permanente do “império”. Não é, obviamente, um cenário ideal para a parceria entre EUA e Brasil com a qual contava Obama na hora em que anunciou as grandes linhas de sua política latino-americana.
Política externa é a expressão internacional dos valores e dos interesses da sociedade nacional. Não é a esfera adequada para a veiculação de doutrinas partidárias ou de correntes ideológicas minoritárias. É o campo da unidade, não da confrontação interna. No primeiro mandato de Lula, a política externa brasileira oscilou no interior dos limites de uma tradição. No segundo, ela viola essa tradição, transformando-se aos poucos num pátio de folguedos de ideólogos irresponsáveis.
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