Antecipando a palestra que o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco realiza na Casa do Saber Rio, dia 5 de julho, no ciclo “Brasil, presente e futuro”, a convite do Instituto Millenium, entrevistamos o economista sobre a hiperinflação e a trajetória da moeda no país.
Avaliando a trajetória da moeda pelo viés institucional, o empresário considera o evento de hiperinflação brasileira como o mais perverso da economia mundial. Franco desmitifica o aumento do consumo, tão alardeado como problema para o crescimento da inflação no país, e concentra a preocupação no gasto público e no uso político da moeda: “Aceitamos o governo gastar mais do que arrecada com uma naturalidade imensa, como se isso fosse parte da vida, e não é não. Isso é parte da doença que nos levou à hiperinflação.”, analisa.
O empresário alerta: “Hoje existe uma desconexão entre receita e despesa porque as instituições brasileiras que regulam o orçamento público são fracas”.
Leia a entrevista
Instituto Millenium: O nome da sua palestra na Casa do Saber Rio é “A incrível história da moeda e da hiperinflação do Brasil”. O que é incrível nessa trajetória?
Gustavo Franco: É incrível (a trajetória) porque é muito singular, é uma economia que tem oito padrões monetários em menos de meio século. E eu não sei se existe outra moeda nesse planeta que tenha tido essa trajetória, no meio da qual existe um episódio de hiperinflação e sucessivos congelamentos de preço simultâneos, mais a mudança de padrão monetário, com geralmente cada um deles trazendo um evento de default da dívida interna.
É uma experiência absolutamente singular que eu procuro observar do ângulo institucional, do ângulo das leis, com o intuito de observar a fraqueza institucional, na definição do que é dinheiro e do uso que o Estado pode fazer do dinheiro: é o que está na raiz de todo esse episódio. Esse é o tema central da palestra.
Instituto Millenium: A hiperinflação foi um episódio singular no Brasil?
Franco: Foi singular, mas também, e de muitas maneiras parecido – sem deixar nada a dever aos episódios clássicos – com os da Alemanha de 1923 – tão conhecido, temido e festejado. O nosso caso de hiperinflação foi muito parecido, mas durou muito mais tempo, enquanto a hiperinflação da Alemanha ocorreu no final da primeira guerra, entre 1918 a 1923, o nosso durou mais de uma década.
Mas a análise depende, é claro, do que se define como um episódio de inflação alta, quando começa e quando acaba. Muitas definições costumam ser arbitrárias, porém, em análises mais recentes – cujos detalhes vamos discutir na palestra – se condena a duração e a intensidade.
Talvez não exista outro episódio tão severo quanto o nosso, uma vez que tão sério, com um pico muito grande de inflação numa determinada data, em um mês. O fato de a inflação durar às vezes 15 anos deforma a economia do país de uma maneira muito mais perversa e duradoura do que um episódio impactante, mas de curta duração.
Instituto Millenium: A hiperinflação é uma espécie de trauma econômico para o Brasil. Há riscos de o pais voltar a vivê-la ou ela deve ser vista como o resultado de um contexto anterior muito específico que provavelmente não se repetiria?
Franco: As boas notícias são que o trauma, ou pelo menos as dores, não estão mais tão presentes. A memória das pessoas, inclusive das pessoas que têm menos de 30 anos hoje em dia e que tinham 15 anos quando a inflação acabou, vai ficando para atrás. Isso é bom, uma vez que as pessoas desintoxicam mentalmente os maus hábitos, mas também é ruim porque a memória ajuda muito à prevenção.
O trauma na Alemanha, por exemplo, permaneceu e foi ampliado até pelo programa político que se seguiu à inflação, que foi a ascensão do racismo e depois a guerra, todos esses traumas acabaram aumentando o medo e a intolerância que a sociedade alemã tem em relação à inflação.
Aqui no Brasil eu não creio que o trauma seja igual ou comparável ao que existe na Alemanha. Portanto a nossa tolerância, não apenas com a inflação, mas com as coisas que levam a inflação, ainda é muito alta. Nós ainda temos uma postura com relação a desequilíbrios fiscais, por exemplo, inacreditavelmente branda. Aceitamos o governo gastar mais do que arrecada com uma naturalidade imensa, como se isso fosse parte da vida, e não é não. Isso é parte da doença que nos levou à hiperinflação. Do lado ruim, o esquecimento retira um pouco dos freios que talvez devessem estar mais apertados, em relação ao que leva à inflação.
Instituto Millenium: O que é mais preocupante no Brasil hoje? O gasto público brasileiro ou o alardeado aumento do consumo?
Franco: O gasto público. O consumo, o setor privado é, vamos dizer, o objetivo de tudo na nossa sociedade: o padrão de vida das pessoas. O gasto público deveria estar em um patamar inferior, como se fosse um instrumento para o crescimento, para alavancar o investimento privado até certa capacidade. E em última instância, o bem estar das pessoas tem a ver com o consumo. Não está errado consumir, o que está errado é o governo gastar além do que a sociedade lhe dá de recursos sob a forma de impostos, que já é muito.
Instituto Millenium: Quais são medidas preventivas que o governo deveria tomar para evitar um novo episódio de hiperinflação no Brasil?
Franco: Em vez de medidas, deixe-me primeiro falar um pouco sobre a filosofia. A filosofia é simples: de que a mesma sociedade que decide quanto quer pagar de impostos é a que deveria dizer o quanto o governo gasta, e hoje isso não é feito.
Hoje existe uma desconexão entre receita e despesa porque as instituições brasileiras que regulam o orçamento público são fracas. Isso é próprio de países jovens e é uma das fraquezas que nos levou a hiperinflação. A outra fraqueza tinha a ver com o processo de fabricação de moeda pelo Banco Central. Isso está sob controle, mas as finanças públicas não estão. Daí esse crescente conflito entre o desejo do governo de gastar se materializa efetivamente em gasto excessivo. Os freios que a autoridade monetária impõe ao governo criam uma espécie de batalha entre autoridade fiscal e autoridade monetária, onde o Banco Central parece estar sempre no papel perverso daquele que nega e forçando os juros pra cima, mas, na verdade, o que força os juros pra cima é o gasto público. A busca de financiamento, do endividamento, expulsa o setor privado da poupança, absorve pra si toda a poupança e pra isso os juros tem que estar elevados.
O Banco Central é um instrumento, o coração do problema da inflação continua meio que intacto, ele está diferente no sentido de a sociedade ter achado uma maneira de evitar a hiperinflação, mas não extinguiu a infecção por inteiro, ela existe ainda e hoje a patologia, o sintoma perverso que ela provoca é a taxa de juros. E na cabeça das pessoas, a taxa de juros não se deve a irresponsabilidade fiscal, se deve ao Banco Central. Nesse aspecto fica parecendo o crime perfeito, pois a sociedade não entende que é o gasto público quem está trabalhando contra ela. E, na verdade, vê o gasto público com benevolência, quando deveria ser exatamente o contrário.
Esse é o grande problema filosófico. Como se traduz em medidas, o que exatamente cortar, onde deve ir a tesoura, é uma assunto que idealmente nos deveríamos endereçar a um processo orçamentário sadio, onde o congresso nacional deveria se debruçar sobre receita e despesa e entregar a sociedade um orçamento equilibrado, onde a receita é igual a despesa. Exatamente o que não temos hoje em dia.
grande economista. trabalhou muito pelo país. não canso de ler o diz.
Admiro Gustavo Franco pelas obras em que faz uma curiosa mistura entre Literatura e Eonomia; por exemplo, quando analisou os textos de Fernando Pessoa e Machado de Assis; obras que recomendo a todos que se interessam pelo saber.