O termo “pós-verdade” apareceu pela primeira vez em 1992 na revista “The Nation”. “Ditadores até agora tiveram trabalho para suprimir a verdade”, escreveu o roteirista Steve Tesich. “Hoje isso não é mais necessário. Como povo livre, decidimos viver num mundo de pós-verdade.” Em 2006, o comediante Stephen Colbert cunhou outra palavra para o mesmo fenômeno: “truthiness”, algo como “verdadice”, definida como uma afirmação que tem jeitão de verdadeira, que instintos e intuição julgam verdadeira — mas é falsa, não resiste aos fatos. “Costumava ser assim: todos tinham direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos”, disse Colbert. “Não é mais o caso. Fatos não importam. Percepção é tudo. É certeza.” Dez anos se passaram e, diante das fotos da posse de Donald Trump, sua assessora Kellyanne Conway saiu-se com a expressão “fatos alternativos” para qualificar a visão estapafúrdia da Casa Branca sobre a multidão, “a maior a ver uma posse”. A vitória de Trump e o Brexit levaram os dicionaristas de Oxford a eleger “pós-verdade” como palavra do ano em 2016. Os exemplos mostram que o problema não começou agora. “É tentador atribuir a ascensão da pós-verdade a Trump. Tentador e errado”, escreve o jornalista Matthew d’Ancona em Post-truth. “Trump é mais sintoma que causa.”
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Ex-diretor de redação da conservadora “The Spectator” e um dos mais prestigiados colunistas no Reino Unido, D’Ancona produziu um manifesto em defesa do Iluminismo, da ciência e do jornalismo, ameaçados pela “pós-verdade”. Não se trata da mesma coisa que mentira. “A novidade não é a mendacidade dos políticos, mas a resposta do público”, afirma. “Não esperamos mais que falem a verdade. O que importa não é a deliberação racional, mas a convicção estabelecida.” A certeza predomina sobre os fatos, o “visceral sobre o racional”, o “enganosamente simples sobre o honestamente complexo”.
A “pós-verdade” surgiu com os filósofos do pós-modernismo, cujo pensamento “frequentemente abstruso e impenetrável” se popularizou. Deriva de pensadores como o francês Jean-François Lyotard — “não há fatos, apenas interpretações” —, o americano Richard Rorty — “verdade é aquilo com que meus colegas me deixam fugir” — ou o russo Alexander Dugin – “verdade é questão de crença, não há fatos”. Para eles, a verdade humana mais profunda é emocional, subjetiva e prescinde dos fatos. Tal visão tem seu valor quando estão em jogo preferências amorosas, sexuais, artísticas, esportivas ou até alimentares. Mas, aplicada à política, à ciência ou ao jornalismo, é pura lorota. No mundo globalizado e interconectado, a “emoção recuperou a primazia, e a verdade bateu em retirada”. As redes sociais forneceram um canal a todo tipo de “fato alternativo”. Onde a tecnologia digital é o hardware, a pós-verdade se tornou o software. “Retuitamos, clicamos, compartilhamos sem checar”, diz D’Ancona. “Isso tem consequência. Conspiramos, sabendo ou não, para desvalorizar a verdade, ao hibernar no buraco de Hobbit do lugar-comum, os rostos piscando à luz dos incontáveis sinais eletrônicos que reforçam o que já pensamos saber.”
Para as populações ressentidas com a globalização, não há antídoto ao pensamento mágico ou às teorias da conspiração e suas explicações reconfortantes. “A força popular delas depende não da evidência, mas de sentimentos.” Elas se nutrem do colapso da confiança nas instituições — políticos, academia e imprensa. “A tarefa do jornalismo é revelar a complexidade, as nuances e paradoxos da vida pública”, diz D’Ancona. “Justamente quando a confiança na imprensa é mais necessária, ela caiu aos níveis mais baixos.” No lugar de informações verídicas, prolifera a propaganda — do tabaco às mudanças climáticas; das vacinas ao déficit da Previdência. Em resposta, a imprensa dobrou a aposta em forças que a levaram ao sucesso no passado. Em vão. No pântano da pós-verdade, isso surte o efeito contrário. “Os inúmeros sites de checagem de fatos se revelaram uma força inadequada contra a enxurrada torrencial das redes sociais.”
Se quiser sobreviver, o jornalismo precisará mudar. Claro que empresas digitais, como Google e Facebook, têm de reconhecer sua responsabilidade como distribuidores de informação. Mas a imprensa precisa deixar de lado glórias e fórmulas do passado para seduzir de volta o público, desorientado em meio à avalanche. Para D’Ancona, é preciso aprender com o inimigo, adotar uma narrativa simbólica tão poderosa quanto a da propaganda. “O contra-ataque precisa ser emocionalmente inteligente, além de rigorosamente racional.” É preciso levar o público a recuperar a sensibilidade para o “fedor das mentiras”. Mas isso não acontecerá espontaneamente. “É um erro assumir que a apatia é inevitável”, diz ele. “A verdade é descoberta, não distribuída, é um ideal a almejar, não um direito indolente.”
Fonte: “Época”, 20/08/2017.
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