A marcha da história pode percorrer descaminhos decadentes ou retrocessos danosos. A civilização não é uma conquista imperecível, pois a irracionalidade bestial está ali – e sempre estará ali – nos alicerces profundos da natureza humana. O fato é que razão e bom senso exigem continuado esforço intelectual e elevada disciplina moral. Por sua vez, o instinto irracional incontrolável vem a reboque de gatilhos emocionais oportunistas que, uma vez disparados, pouco se preocupam com as consequências do amanhã.
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Órfãos da República
No entrechoque do possível, a institucionalidade política procura proteger a humanidade das oscilações de humor daqueles que exercem o poder. Em vez do decisionismo subjetivo imprevisível, as instituições visam garantir estabilidade, segurança jurídica e o justo funcionamento da vida em sociedade. Por assim ser, o berço do progresso civilizatório está no surgimento institucionalista capaz de bem mediar o universo dos apetites humanos na direção do desenvolvimento ético, econômico e social.
A clássica lição de Douglass North bem ensina que “institutions are the rules of the game in a society”. O problema é que as regras podem ser boas, mas a execução terrível. O modelo normativo abstrato não resolve as deficiências concretas do capital humano executor. Boas leis ajudam, mas não bastam. Mais do que um simples querer legalista ingênuo, é fundamental a criação de uma cultura institucional intolerante à desonestidade ou desvios de conduta. A efetiva e fiel aplicação das regras do jogo, antes de mérito pessoal, deve ser um imperativo comportamental inegociável, sujeito a penalidades categóricas.
Definitivamente, o Brasil não sofre pela falta de regras; leis existem muitas e, na média, de boa qualidade normativa. É lógico que poderíamos e deveríamos aperfeiçoar a sistematização com uma legislação mais simples, enxuta e acessível, limando quinas ultrapassadas. Todavia, a pauta mais urgente e prioritária é outra: a baixa eficácia das regras postas. Ora, de nada adianta fazer leis e não as cumprir. A Constituição, por exemplo, promete muito, mas entrega pouco. Diz que ama o povo, mas trai diariamente a democracia.
Sem cortinas, nossas instituições funcionam muito aquém do aceitável. E o mais grave: a ineficácia institucional é tamanha que a impunidade acaba se materializando em regra. Nosso déficit de legalidade é assombroso: o Executivo tem enormes dificuldades de governar; o Legislativo insistentemente desonra a representação popular; e o Judiciário navega em mares revoltos, enredado na morosidade judicial.
Paralelamente, ganha força um intenso sentimento de estafa cívica. As pessoas estão cansadas de serem enganadas pela política; a esperança do voto como motor de mudanças sociais transformadoras naufraga no pragmatismo corrupto e incompetente do poder. A Constituição, assim, se desconstitui. E, como a impunidade reina, as regras do jogo viram palavras sem som.
No atual diálogo de mudos, a erosão institucional atinge o núcleo de sustentação da República. A explosiva tensão instalada entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, testemunhado por um Congresso servil e apático, expõe a democracia a riscos frontais.
Sim, sistemas políticos não são entidades perpétuas; se até impérios caem, instituições, como castelos de areia, são vulneráveis a marés febris. Então, o momento exige absoluta cautela, prudência e cálculo de ações. Erros, além de custarem caro, podem perdurar por décadas.
Aqui chegando, sejamos claros: a democracia brasileira não merece ser exposta a aventuras juvenis. Mas como resolver problemas complexos com políticos tacanhos? Eis, aí, o limite das instituições: a ausência de capital humano pode ser fatal. É claro que o jogo nunca vai parar, mas o tabuleiro e as peças sempre podem mudar. Na expectativa pelo melhor, a sabedoria superior de João Mangabeira aponta o caminho: “A Constituição não pode ser interpretada ou construída como um obstáculo à felicidade coletiva”. E ponto final. Ou reticências?
Fonte: “Gazeta do Povo”
Foto: Marcelo Camargo