Para muitos leitores, o editor de um livro é quem corrige erros gramaticais e passa a “tesoura” no texto, definindo as prioridades do que será publicado. O trabalho do jornalista Carlos Andreazza, editor-executivo de literatura brasileira e não ficção da editora Record, maior conglomerado editorial da América Latina, é muito mais amplo.
Entusiasta da grande reportagem, ele fala nesta entrevista sobre os desafios de se viabilizar uma publicação e sobre a relevância do livro como mídia, de seu papel social como último na cadeia de pensamento, por buscar mais profundidade na linguagem, na reflexão e na descrição dos personagens.
Editor do grupo que lidera em número de títulos o ranking anual de mais vendidos da revista “Veja” e do Publishnews (com 66 títulos na lista anual), Andreazza é editor dos livros de Rodrigo Constantino, Marco Antônio Villa, Otávio Cabral, Felipe Moura Brasil e de Reinaldo Azevedo.
Nesta entrevista, ele também fala sobre a ascensão de um público favorável a valores como economia de mercado e livre iniciativa.
Wagner Vargas: Você editou livros que “elevam o tom” com o pensamento de esquerda e criticam atitudes de personalidades bem vistas pelo público. No entanto, essas publicações venderam e ainda estão vendendo muito bem, listados como mais vendidos. Há um público em busca desse tipo de abordagem ou os leitores brasileiros estão mais críticos?
Carlos Andreazza: Acredito que, antes de tudo, essa é uma questão comercial. Ainda há uma demanda reprimida por livros de autores liberais e conservadores. O mercado editorial e o jornalismo, de modo geral, não ofereciam literatura para esse público que, essencialmente, é jovem e consumidor. Independentemente da minha posição, como editor, eu vejo, claramente, um mercado e lamento que muitas editoras ainda não o explorem, embora eu já perceba um aumento da concorrência nessa área.
Wagner Vargas: Qual é o perfil desse público? O que eles buscam?
Andreazza: Lançamentos assinados por Marco Antônio Villa, por exemplo, atraem um público muito jovem e disposto a debater. No lançamento de “Esquerda caviar”, do Rodrigo Constantino, não fizemos debate em algumas praças e as pessoas nos cobravam. Em alguns casos, até improvisamos um bate-papo. As pessoas queriam ouvir e trocar ideias. Isso pode representar um amadurecimento no perfil crítico desse público.
Wagner Vargas: Como editor você tem incentivado a publicação livros- reportagem. O que eles têm de específico que podem trazer luz ao senso comum?
Andreazza: É importante investir no livro reportagem porque ele mostra a vitalidade do jornalismo para além da coisa efêmera do jornal, desenvolvendo a linguagem e o trabalho literário, aprofundando episódios, histórias e personagens. Há mercado para o livro reportagem, desde que não seja chapa branca, caso esteja disposto a mostrar diversos lados e fomentar o debate e a discussão.
Wagner Vargas: Qual é o papel do editor no fomento dessa modalidade?
Andreazza: Acredito muito nos livros que publico e, felizmente, existe uma resposta comercial. O papel principal do editor é ir atrás das histórias e dos autores. Às vezes, analiso uma passagem da história do país e penso: “Poxa, isso não foi explorado jornalisticamente e tem potencial para – nas mãos de um grande autor – tornar-se um grande livro reportagem”. Em alguns casos, tenho a ideia do livro e começo a pensar no autor que poderia escrever. Em outros, é o próprio autor que, já sabendo desse propósito da nossa abertura para a reportagem, nos procura com uma história. Um editor precisa ter amarras conceituais muito claras sobre o assunto que ele está publicando, se eu não tenho, não é hora de eu publicar. Outro editor, no entanto, pode ter.
Wagner Vargas: As leis do Brasil criam empecilhos para a publicação de biografias não autorizadas, o que exige assumir certos riscos ao publicá-las. Quais as dificuldades encontradas para publicar a biografia de José Dirceu, por exemplo?
Andreazza: A pressão é imensa, e de todos os lados, quando se publica um livro como esse. Dito isso, não tive nenhuma pressão direta do José Dirceu ou de alguém próximo dele, não recebi nenhum recado, mas fomos massacrados em alguns veículos da imprensa. Foi uma campanha espúria, cafajeste. Publicamos o livro em sigilo para que ninguém soubesse. Nosso receio era que ocorresse um processo judicial que impedisse a distribuição do livro que matasse o livro na origem, ou seja, a censura prévia.
Mas a obra vai terminar o ano entre um dos mais dez vendidos de não ficção no Brasil, apesar de toda a campanha de difamação contra a publicação. Como editor, não dá para comprar todas as “brigas”, mas, em alguns casos, a gente precisa se posicionar e foi o que fizemos. Quando eu digo “briga”, não é arranjar desavenças com o biografado, mas, sim, publicar um livro que ninguém quer publicar. Mas tudo isso é um trabalho de muita responsabilidade.
Wagner Vargas: Há cerca de dois meses, um grupo de artistas defendia a publicação apenas de biografias autorizadas, afirmando preservar a privacidade do biografado. Faz sentido opor a privacidade à biografia, como uma antítese?
Andreazza: É um cruzamento espúrio! Na verdade, o que está em jogo é a liberdade. O parâmetro da vida pública para o livro é, antes de tudo, o mercado. Existe interesse em uma biografia sobre mim? Não. Então, não faz sentido a publicação. Eu posso me incomodar com o uso da minha imagem e o porquê da pessoa querer publicar uma biografia a meu respeito. Mas, ainda sim, acho que a liberdade deve prevalecer. A pessoa tem o direito de publicar.
Essa é uma questão legislativa, o Congresso deveria tratar do tema, mas não vai. Mais uma vez o Supremo vai ter que legislar. O processo estava parado por dois anos, mas o assunto se tornou público e teve esse impacto todo. Uma vez que o Supremo pode trazer isso a plenário, não tenho a menor dúvida que o código vai ser modificado, pois estipula que o biografado tem de conceder autorização prévia à publicação e creio que isso vai acabar. Neste ponto o Procure Saber, indiretamente (e sem querer), nos ajudou.
Wagner Vargas: Essa mudança não poderia abrir espaço para difamar pessoas?
Andreazza: Não defendo o direito de publicação para difamar pessoas ou caluniá-las. Quando publico uma biografia é porque acredito no trabalho do autor e faço meu trabalho de editor. É um trabalho de responsabilidade e respeito também. Quando há interesse naquela figura, o autor teve um interesse fundamental em pesquisar aquela vida e isso não é liberdade para sair atacando as pessoas, difamando, muito pelo contrário, sou muito rigoroso com isso.
Se o personagem se sente agravado, uma vez que o livro esteja publicado, circulando, gerando debate, crítica, vendendo, ele pode recorrer à Justiça. Pode demorar, mas se ele tiver razão ele ganha. Isso é fato. Uma pessoa é pública porque o reconhecimento dela, o sucesso, decorreu da exposição. O sujeito é um artista, um escritor, um músico, ele veiculou a produção dele publicamente, foi atrás do consumo, por isso tornou-se uma pessoa pública. Se existem pessoas interessadas em conhecer aquela vida a biografia contribui para isso.
Wagner Vargas: Apesar da baixa qualidade dos serviços públicos e eficiência discutível das estatais, o brasileiro paga uma alta carga tributária. No entanto, as manifestações de junho gritavam em prol da liberdade e, muitas vezes, na defesa de “mais Estado” e os próprios manifestantes chamaram a mídia de golpista, mas se valeram das informações dela. Qual o papel do livro como mídia nessa discussão?
Andreazza: Ninguém vai às ruas protestar por menos Estado, isso está na origem de qualquer manifestação. Na época, todo o mundo achava aquilo o máximo, que era contra o governo, contra o PT. Mas, na verdade, aquilo era a favor. E se existe alguém que pode dar mais Estado e ocupar os espaços é quem está no poder. A conscientização disso deveria ser feita e não foi pelo o jornalismo que, com raras exceções, foi muito mal. Faltou reflexão.
O papel do livro é de educador. Se as pessoas que acreditaram naquilo como uma grande mudança, que era bom para o Brasil, tivessem o hábito de ler livros, de um modo geral, talvez houvesse mais desconfiança. O livro é um formador de pessoas desconfiadas, de céticos.
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