As eleições municipais, como os campeonatos de futebol, fazem surgir novos personagens e sepultam outros. Como temos 5.568 municípios com milhões de eleitores, há um verdadeiro firmamento de supernovas, velhos cometas que jamais saem do céu e muitos astros que simplesmente se apagam – ou dão a impressão de que desaparecem.
Se tomarmos as duas cidades mais importantes do país, há, no Rio de Janeiro, a emergência do jovem Eduardo Paes (PMDB), que desenha uma nova liderança. Em São Paulo, venceu Fernando Haddad, do PT, com e por meio de Lula. Isso pode criar um novo padrão eleitoral baseado no voluntarismo pessoal do ex-presidente. Lula escolhe uma pessoa – você ou eu, caro leitor -, nos lança pelo PT (que serve como uma embalagem ou veículo) e, com a ajuda de seu carisma e poder simbólico de falar às massas eleitorais que não assinam nem leem jornais, somos – salvo erro de cálculo – eleitos! Nesse desenho, estaríamos retornando aos tempos do populismo, que falava precisamente o que cada qual queria ouvir, prometendo ganho para todos.
Mas isso não é tudo. Em Belo Horizonte, no Recife e em Porto Alegre tivemos as vitórias de Márcio Lacerda (PSB), Geraldo Júlio (PSB) e José Fortunati (PDT). Que são, além de caras novas, representantes de partidos com um novo protagonismo no cenário nacional. Essas cidades terão nos proximos anos um peso decisivo no cenário político e cultural brasileiro que hoje elimina, graças à comunicação instantânea e globalizada, a velha hierarquia dualística do café com leite predominante na Velha República e incondicional no Rio de Janeiro da Corte e dos tempos em que era a Cidade Maravilhosa e capital da República.
Esses novos atores juntam-se ao retorno de personalidades importantes, mas postas no ostracismo político pelo poder do governo federal e pela vontade de Lula, como o ex-senador Arthur Virgílio, um político de peso e novo prefeito de Manaus. Dirão que cito uma cidade sem importância, mas falo na coletividade que, ao lado de Belém e outras comunidades, será uma peça importante do futuro deste nosso universo planetário, todo ele conectado em rede e totalmente condicionado pelas descobertas e pela humanização ecológica, cujo centro mundial é a Amazônia brasileira. A vitória em Belo Horizonte projeta, além disso, Aécio Neves – isso, claro, se o PSDB não atrapalhar com seu notório ideologismo acadêmico e sua notória ausência de ânimo oposicionista.
Estaríamos no mato sem cachorro ou diante de grandes esperanças? Penso que vivemos um hiato ou uma pausa. Tomo como prova disso os votos em branco que, obviamente, são o grande fantasma eleitoral deste nosso Brasil. Eles exprimem um profundo desgosto pelos candidatos, uma grave decepção com os políticos Chega – dizem esses não votos – de calhordas que apenas roubam ou desperdiçam recursos públicos! Eles são igualmente o sinal do final das fórmulas ideológicas fáceis com raízes no populismo salvacionista e messiânico de esquerda e direita. Se você soma messianismo e ideologia numa luta contra uma ditadura militar, como fazia o PT quando Lula era um operário com cara colérica, tem uma esperança. Só que carisma vira rotina e oposição corajosa transforma-se em poder estabelecido.
Pois, no poder, o líder oposicionista é devidamente socializado por nossa elite republicana. Que dá, logo de cara, ao presidente eleito e ainda tonto pelos ritos de posse, um palácio, um cartão corporativo com crédito ilimitado, mais de 100 puxa-sacos, entre mordomos e guarda-costas – para não falar nos 22 mil cargos de confiança que ele pode preencher de sua cabeça. Afora, ainda, os ministérios que ele pode aumentar ou diminuir e, por fim, mas medidas provisórias. Isso transforma o raivoso operário num sorridente presidente. Ou faz um raivoso varredor de corruptos virar um projeto de ditador cujas “forças ocultas” inventaram uma renúncia que era um protogolpe, como ocorreu com Jânio Quadros. Ou um dramático e admirável suicídio de honra para redimir a nome do “mar de lama” da corrupção política, como ocorreu com Getúlio Vargas. Algo impensável para quem é, hoje, eleito em nome do povo com a ideologia da caridade, toma vinhos de US$ 500 e tem centenas de gravatas. Para quem montou um mensalão e até hoje tem problemas com um fato que fala alto nesse nosso novo momento: a exigência de clareza e transparência que o governo deve à sociedade – a todos nós que somos o povo (constituído de todo o tipo de gente) – que, afinal, elege, concede e legitima cargos a esses, digamos com candura, candidatos.
Há, penso, sinais claros de uma desilusão com as fórmulas feitas, mesmo porque ninguém mais voltará dos Estados Unidos, da França, da Alemanha, da Inglaterra ou da Rússia com a “última palavra” em termos de receitas. Hoje elas chegam de locais impensáveis como uma China e de uma Ásia incompatíveis com nosso forte eurocentrismo e, mais ainda, com nosso estatismo legalista e paquidérmico, forjado em Coimbra, e com nosso tradicional sindicalismo petebista, cuja força de zumbi deverá ser estudada com afinco pelos politicólogos. Na ausência de receitas tanto do lado liberal quanto do lado messiânico-stalinista, seremos obrigados – eis aí a enorme novidade – a fazer o que estamos fazendo: resolvendo nossos graves problemas na vivência de nosso dia a dia.
E encontro, aqui, talvez a novidade final. Uma espécie de paisagem em que se desenrola a mudança, sempre humilde como um mendigo. Quero rne referir à tendência pouco percebida de gente interessada em fazer política local, em pensar ou repensar as rotinas de suas comunidades no que elas têm de bom e desastroso, de modo mais prático que ideológico.
Menos que novas propostas no papel, o povo quer gerentes e administradores presentes, eficientes e capazes de resolver ou melhorar suas vidas de trabalho e particularidades. Essas coisas que são como a chuva miúda e não precisam de grandes discursos e demagogos. Necessitam apenas de trabalho ao lado do povo, e não contra ele. Nisso, o julgamento do mensalão e o papel que nele tem tido o Supremo Tribunal Federal são decisivos. Porque, como as revoluções, ele só será efetivamente sentido com o tempo. O tempo de estabelecer um Brasil igualitário. Um Brasil governado pela lei que vale para todos, mesmo para o partido dominante. Eis, quem sabe, o fim de uma época.
Fonte: revista “Época”
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