Cachoeira conversava com Demóstenes na língua do Nerso da Capitinga. Parece bobo, leso, mas é o capeta
Depois do barulhento sucesso dos diálogos entre o senador Demóstenes Torres e o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, reproduzidos caudalosamente nos jornais, nas revistas, na televisão e na internet, fica no ar essa ressaca, esse mal-estar, essa ansiedade um tanto difusa, sem horizonte. Que ambiente sombrio, infecto, que desalento! A gente tem a sensação de que, no Congresso Nacional, todos os fios de todas as meadas querem nos levar à corrupção. Ninguém tem mais certeza alguma sobre a reputação de mais ninguém. Até agora, de certo, certo mesmo, só sabemos que Demóstenes e Cachoeira conversavam na língua do Nerso da Capitinga.
Desse personagem, o Nerso, o leitor certamente vai se lembrar. Inventado e interpretado pelo ator Pedro Bismarck, Nerso é uma estrela dos programas humorísticos de TV: um caipirão de pança farta que ficou célebre pelo modo mineiro-goiano de mastigar as sílabas, como um capiau praguejando, conversando com o capim no meio do pasto. Com seu jeito de bobo, Nerso dá nó em pingo d’água. Parece leso, parece pastel, mas é o capeta.
Demóstenes, eleito pelo DEM de Goiás, nunca teve nada de Nerso, é verdade. Em suas performances moralizantes, em seus ilibados pronunciamentos, desfilava de abotoaduras e lenço decorativo no bolso do paletó. Mas, agora sabemos, dentro de sua compostura hipercerimoniosa, vivia escondido o matuto. Durante as obscuras conversações por celular, agora amplamente divulgadas, de vez em quando sapecava um “trem bão”.
“Cê entendeu?”, ele pergunta a Cachoeira, a quem chama de “mestre”. “O trem lá não andou nada.” Aqui, o parlamentar usa o vocábulo “trem” de acordo com a melhor sintaxe de nersodacapitinguês. “Trem”, no solerte idioma, significa algo como negócio, arranjo, acerto – de preferência, suspeito. É o trem que invariavelmente lesa outrem. Esse trem é a substância de tudo o mais. Tanto assim que a principal ocupação de Demóstenes e Cachoeira é fazer o trem andar. São maquinistas de ferrovias ocultas. Quando eles pronunciam essa sílaba forte, trem, falam de coisa grande, de locomotivas valiosíssimas. Hoje, relendo as transcrições que viraram peças literárias de domínio público, a gente sente um certo frio na espinha ao ler tanto trem. Até mesmo Nerso da Capitinga ficaria amedrontado: “Cé besta, sô!”.
Afinado com Demóstenes, Cachoeira também é fluente em nersodacapitinguês:
– Nós não estamos pagando o cara lá com esse trem, uai? Que demora é essa?
Cachoeira não se conforma. Se tem trem na linha, como é que o trem não sai?
À medida que vamos avançando na leitura do vasto material, aprendemos que a acepção semântica do substantivo trem não varia: designa o comércio de vantagens inconfessáveis. Diz Sua Excelência, Demóstenes:
– Tô achando que esse trem de IBAMA não vai resolver nada pra ele, não. Tô às ordens, mas acho que é melhor ir por cima. Eu tenho acesso bom à Ministra.
Nesse ponto, o trem precisa pegar uma via elevada. “Ir por cima” significa saltar de escalão. Se o “trem” não atinge as metas empresariais no nível de planície (o IBAMA), será necessário apelar ao ministério, que é mais próximo do Planalto. Aí, sim, o “trem” vai andar. Aí, sim, toda essa trenzaiada dos quintos dos infernos vai engatar.
São incontáveis “os trem”. Isso mesmo, “os trem”, sem “s” no final. Pelas transcrições desse formidável “Discurso dos Trem”, com vagões descarrilados, enfileirados ou parados, fica evidente que o substantivo “trem” dispensa flexão de número. Um trem, dois trem, três trem. A razão disso talvez seja dificultar o trabalho dos investigadores da Polícia, que terão depois dificuldades de aquilatar a quantidade de trens.
Tome-se, nesse quesito, a seguinte pérola de Cachoeira:
– Você teve com ele ontem pra olhar aqueles trem que eu te pedi?
Pobre Nerso da Capitinga. Por tráfico de influência linguística, foi parar nos anais do Congresso e nas folhas corridas da Polícia Federal. Ele que se cuide. Considerando a linha sinuosa em que se perdem os processos judiciais contra políticos no Brasil, nosso Nerso pode virar o azarão do jogo. Se bobear, dirão que a culpa foi dele. Os outros se safarão felizes, como turistas no trem da alegria.
No final, dirão que “os trem eram inocente”. Invocarão a memória de Raul Seixas, que cantou o trem zen: “Ói, óia o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem”. Que a Justiça não caia nessa. O trem de Raul era luminoso, libertador. Era o trem das 7. Esse aí, esse trem do senador e do “mestre”, é um maldito trem fantasma.
Fonte: revista Época, 09/04/2012
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