Quem nunca entrou num supermercado, apinhado de gente, em pleno sábado à tarde? Para muitos, trata-se de um “programa de índio”, que eu mesmo procuro evitar a todo custo, inclusive tentando persuadir minha mulher de que vale a pena fazer as compras pela internet, ainda que por um preço um pouco mais salgado.
Naquela tarde, entretanto, talvez influenciado por um artigo que acabara de reler, minha sensação ao adentrar aquele mega-estabelecimento foi diferente. Senti que presenciava um milagre, não um milagre de Deus, mas um milagre do engenho humano. Havia ali centenas, talvez milhares, de pessoas, das mais diversas classes sociais, enchendo carrinhos e esvaziando prateleiras recheadas de mercadorias, desde alimentos frescos até equipamentos eletrônicos sofisticados, passando por roupas, utensílios do lar, cosméticos e mais uma infinidade de diferentes produtos. Parei por um instante para pensar naquele espetáculo tão corriqueiro quanto grandioso, que todos nós nos acostumamos a assistir, sem contudo conferir-lhe a devida importância.
Nenhuma daquelas pessoas que ali estavam fez qualquer pedido prévio ao gerente do supermercado, nem tampouco deu qualquer indicação sobre os produtos de que precisariam. Elas simplesmente apareceram lá, no dia e hora de sua conveniência, com a certeza de que encontrariam as mercadorias de sua preferência, nas quantidades desejadas.
Sem dúvida, um dos mais fundamentais insights de toda a teoria econômica revela como os indivíduos, separados pela distância, por interesses diversos e algumas vezes conflitantes, por níveis de conhecimento e habilidades diferentes, idiomas vários, culturas estranhas, etc. são capazes de cooperar uns com os outros para produzir bens e serviços que satisfarão os desejos e necessidades de gente que provavelmente jamais irão conhecer ou sequer encontrar.
Para que as prateleiras daquele supermercado estivessem cheias naquele sábado, atividades estruturadas, encadeadas e harmoniosas de milhões de profissionais, responsáveis pela produção, transporte, administração, distribuição, etc. foram necessárias ao longo de vários meses, ou mesmo anos. O mais impressionante, contudo, é que ninguém coordenou todas aquelas atividades. Nenhum super-burocrata, de posse de um plano estratégico infalível, foi necessário para que tudo aquilo se tornasse possível. Não havia ninguém no comando central de operações e, mesmo assim, as coisas funcionaram perfeitamente, para benefício de milhares pessoas que chegaram ali naquela tarde e saíram com suas sacolas cheias.
Agora responda, amigo leitor: é ou não é um milagre?
Adam Smith deu a esse milagre – ainda num tempo em que os mercados eram infinitamente menos complexos do que são hoje – o nome de “mão invisível” – o poder misterioso que leva um sem número de pessoas, cada uma trabalhando para o seu próprio ganho e interesse, a promover o benefício de muitos. De um aparente caos, envolvendo milhões de transações privadas, descentralizadas e descoordenadas, vislumbra-se aquilo que Hayek chamou de “ordem espontânea” do mercado, em que seres humanos interagem livremente para produzir uma gama de bens e serviços tão imensa e extraordinária que muitas vezes a própria mente humana é incapaz de compreender.
Embora testemunhemos milagres semelhantes todo santo dia, o pensamento dito “progressista” ainda considera que o sistema capitalista não presta, dentre outras coisas porque nele impera uma suposta “anarquia”. Esse sofisma sustenta que o capitalismo de livre mercado carece daquelas panacéias que eles apelidaram de “planejamento estratégico”, “planejamento integrado” ou simplesmente “planificação econômica”.
Ao contrário do que eles alegam, no entanto, e como muito bem demonstrou Ludwig Von Mises, o capitalismo é, na verdade, um sistema extensiva e racionalmente planejado. Só que o planejamento capitalista se dá de forma pulverizada, através da ação interessada de cada indivíduo. Quem quer que pense numa determinada ação econômica que lhe pode ser benéfica, assim como nos aspectos operacionais da sua consecução, estará realizando uma pequena parcela da “planificação” de uma economia de mercado.
As pessoas planejam comprar imóveis, automóveis, eletrodomésticos, alimentos, roupas e tudo mais. Planejam que tipo de profissão abraçar e, conseqüentemente, que trabalhos pretendem realizar, de acordo com habilidades específicas que possuem, a fim de obter renda para o próprio consumo. As empresas, por sua vez, planejam produzir novos produtos ou descontinuar os existentes; planejam reduzir custos investindo em novas tecnologias; planejam abrir mais filiais ou fechar as existentes; contratar novos trabalhadores ou demitir os atuais; aumentar seus estoques ou diminuí-los, fazer novos investimentos ou não.
A “planificação econômica” privada ocorre em todas as partes e a todo instante num sistema capitalista. Todos participam dela, consciente ou inconscientemente. Entretanto, para muitos (a maioria) ela é imperceptível, quando não invisível.
Todo esse planejamento dos indivíduos, das famílias e das empresas é regulado por um mecanismo sólido, autônomo e extremamente eficiente, denominado “sistema de preços”. Quem quer que planeje adquirir bens e serviços de qualquer natureza irá inevitavelmente considerar os respectivos preços e estará sempre pronto a mudar os seus planos em função das oscilações do mercado. Também os que pretendem vender alguma coisa levarão em conta a receita que podem auferir e estarão prontos a alterar seus planos na eventualidade de mudança nos preços praticados.
As empresas baseiam seus planos em perspectivas de faturamento e custos de produção. Uma empresa bem administrada possui agilidade para alterar os seus planos em vista de mudanças nos níveis de oferta e demanda dos seus insumos e produtos, cujo principal termômetro são os preços do mercado. Vamos supor que, influenciados pela gripe suína, os cidadãos resolvam alterar os seus padrões de consumo e passem a consumir mais peixe e menos carne de porco. É lógico que, para manter a rentabilidade, os supermercados e restaurantes deverão alterar os seus padrões de oferta, aumentando as quantidades de peixe e reduzindo, na mesma proporção, as de porco. Essas alterações, por seu turno, irão determinar outras mudanças de planos por parte dos seus fornecedores, dos fornecedores dos fornecedores e assim sucessivamente, até que o sistema inteiro tenha sido re-planejado para adaptar-se à vontade soberana dos consumidores.
Portanto, o “termômetro” dos preços leva a que os agentes do mercado estejam continuamente se re-planejando, em resposta às alterações de temperatura da oferta e da demanda, de forma que cada participante está sempre buscando otimizar os seus lucros/benefícios ou, de modo inverso, minimizar as suas perdas. Essa é a maneira pela qual se assegura que cada processo produtivo seja gerenciado de modo tal que acabe colaborando para maximizar a eficiência do sistema como um todo.
Ironicamente, enquanto o capitalismo é extensa e racionalmente planejado e re-planejado, respondendo de forma contínua a quaisquer mudanças nas preferências do consumidor, o socialismo é incapaz de um planejamento econômico razoável, pois ao destruir o sistema de preços e seus fundamentos – vale dizer, a propriedade privada dos meios e a contabilidade de lucros e perdas – destrói também a divisão intelectual do trabalho e a competição.
Por sua própria natureza, o socialismo tira dos indivíduos a possibilidade e o interesse pelo planejamento, cuja realização fica restrita a meia dúzia de “cérebros privilegiados”, que desfrutam de uma prerrogativa exclusiva, sob a absurda e virtualmente perturbada crença de que suas mentes “especialíssimas” poderiam alcançar a capacidade de um deus onisciente e onipresente, capaz de aglutinar todas as informações dispersas entre milhões de agentes. Como resultado, o planejamento racional do mercado dá lugar à ineficiência econômica, ao desperdício de recursos escassos, aos privilégios de toda sorte, à corrupção sistêmica e, muitas vezes, à perversidade da fome.
(O Globo – 06/08/2009)
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