*Felipe Camolesi Modesto
Há séculos o senso comum reconhece a necessidade dos direitos de propriedade. O trabalho de um escultor produz uma obra que é “sua”. O agricultor cultiva uma horta que é “sua”, e pode vender a quem quiser. Qualquer um que violar a propriedade alheia é tido como ladrão, tirano ou usurpador: uma verdade ainda evidente em muitos lugares do mundo.
No Brasil, porém, a história é outra. Constituição de 1988 cria um paradoxo dentro do contexto das repúblicasmodernas. Quando se lê o art. 5°, inciso XXII, percebe-se um desafio. Ao mesmo tempo que declara salvaguardar o direito de propriedade, logo torna legítima a violação desse direito natural.
Na prática, o cidadão é proprietário apenas enquanto sua propriedade servir aos fins que o Estado define como “socialmente legítimos”. Isso levanta uma questão inevitável: se a propriedade não cumprir essa “função”, a pessoa perderá o direito de ser dona do item? A “função social” definiria o limite dos direitos humanos básicos?
A contradição reaparece quando o texto constitucional afirma que tanto a “propriedade privada”quanto sua “função social” são princípios iguais da ordem econômica. Ou seja, possuir algo não é mais importante do que usá-lo conforme o Estado deseja. Mas que tipo de “interesse social” justificaria limitar um direito humano básico?
A Constituição ainda define que uma propriedade urbana só cumpre sua “função social” quando atende às exigências fundamentais do plano diretor. Mas planos diretores podem mudar conforme interesses políticos, e suas “exigências fundamentais” variar segundo prioridades de governo. Se o direito de propriedade depende de documentos temporários e mutáveis, ele deixa de ser um direito e passa a ser uma concessão condicional.
Além disso, o texto permite que municípios apliquem imposto progressivo com base no descumprimento dessas exigências, podendo chegar à expropriação. A mensagem implícita é simples: use sua propriedade como o governo te ordena, ou o governo tomará. Essa lógica supõe que toda propriedade urbana deve servir produtivamente ao programa estatal vigente, desconsiderando que obrigar alguém a usar seu bem de determinada forma é, por definição, uma violação da liberdade individual.
Para além de todas as inseguranças provocadas pela vacuidade e arbitrariedade, é notório que a violação da propriedade privada está na própria natureza do Estado.Enquanto cidadãos comuns trabalham, produzem e trocam voluntariamente, o aparato estatal apropria-se do fruto dotrabalho delas em nome de uma coletividade abstrata, imaginada. Mas essa “sociedade”, tal como o Estado a invoca, exclui convenientemente aqueles que ele mesmo explora. Assim, a chamada “justiça social” torna-se justiça para todos, exceto para quem é prejudicado e paga a conta. O adjetivo “social” vira apenas um eufemismo para a transferência coercitiva de riqueza de produtores para beneficiários do governo.
Murray Rothbard, em seu livro “For a New Liberty”, observa que usar o termo “social” para justificar violações à propriedade é apenas uma estratégia para mascarar a imoralidade do ato. Ele escreve:
“Tratar a sociedade como um ente que escolhe e age, portanto, serve apenas para obscurecer as forças reais em jogo. Se, em uma pequena comunidade, dez pessoas se unirem para roubar e expropriar outras três, isso é claramente um caso de um grupo de indivíduos agindo em conjunto contra outro grupo. Nessa situação, se essas dez pessoas presumissem estar agindo em nome da ‘sociedade’ e em ‘seu’ interesse, tal justificativa seria recebida com risadas; é possível que até mesmo os dez ladrões tivessem vergonha de usar esse tipo de argumento. Mas basta que o número aumente, e essa confusão se torna comum — e consegue enganar o público”.
Agora, veja-se, ainda que estes dez ladrões estivessem roubando para dar a crianças carentes, isso continuaria sendo roubo. Ainda se dez mil pessoas concordassem com os ladrões, isso não deixaria de ser roubo. O dever moral de ajudar não concede o direito de usurpar. Como que o Estado – sendo o suposto garantidor da “ordem social” – eliminaria os conflitos sociais, ao confiscar os direitos que propriamente eliminam conflitos sociais?
O filósofo alemão PhD. Hans-Hermann Hoppeassevera em seu artigo “O Estado resolve ou cria conflito?” ser ilógico imaginar o Estado como solução para conflitos sociais. Para o autor, é justamente o Estado que os torna inevitáveis e permanentes, ao centralizar decisões e violar direitos.
Em sua palestra “Preferência Temporal, Capital, Tecnologia e Crescimento Econômico”, denuncia a origemdo atraso econômico em vários países do mundo:
“Nós explicamos a pobreza de muitos países pelo fato de que os direitos de propriedade, por muitos e muitos anos nesses países, às vezes por séculos, não foram suficientemente protegidos para que as pessoas pudessem poupar e acumular capital”.
A lição é clara: quando as pessoas não têm garantia de que manterão o que produzem, poupança, investimento e cooperação social entram em declínio.
Dessa maneira, é visível a tentativa da Constituição brasileira de conciliar as conflitantes “propriedade privada” e “função social” (poderíamos dizer: os “interesses individuais das pessoas” e o “programa de Estado”). Onde a propriedade é fragilizada, tudo o mais tende a se tornar debilitado: a segurança, o investimento, a moral, a confiança entre pessoas.
Por isso que a violação de liberdades fundamentais, ainda que rotuladas sob nobres “intenções”, produz sempre os mesmos efeitos: estagnação, incerteza e decadência. Logo, se o objetivo é prosperar, é necessário antes abandonar o mito de que a propriedade pertence à sociedade. Ela pertence a quem a criou, a quem a manteve, conquistou e trabalha por ela.