O ministro do novo PJP – Poder Judiciário Político confessou que eles tomaram o poder. Ele reconheceu isso quando disse em Portugal que o Brasil vive num regime que chamou de “semipresidencialismo” e que o Poder Judiciário é o “poder moderador” entre os três poderes no Brasil. Porém, ato falho ou estratégia, isto não passa de uma narrativa para ocupar o lugar da verdade que não pode ser dita: o PJP deu uma espécie de golpe de estado com o uso de suas decisões políticas “judiciais”.
Mais de Juarez Dietrich
O novo Poder Judiciário Político e o fim da harmonia entre os poderes (parte I)
Primeiro, o ministro reconheceu a existência deste novo Poder Judiciário Político e reconheceu que tomaram o poder. Porque não há na Constituição Federal a mais tênue insinuação de que o Judiciário tenha algum poder “moderador” entre os poderes. Também não existe qualquer menção a um regime “semipresidencialista”. Absolutamente nada disso, nem por dedução. E se não há na Constituição o que disse o ministro, resta o que ele realmente disse: o Poder Judiciário está conduzindo politicamente o país e os demais poderes em regime de força de suas decisões políticas “judiciais”. Portanto o PJP governa mediante um golpe sobre os poderes – executivo e legislativo. Não há outra versão para o que disse o ministro.
E os históricos defensores da democracia brasileira desapareceram. OAB, ABI, CNBB, a velha imprensa, deputados e senadores, advogados e jornalistas que estavam de plantão para qualquer “desmando” dos donos do poder, estão agora tomando o chá alucinógeno das cinco com eles – o chá dos índios dançarinos amigos do ministro do PJP.
Não há mais aquelas vozes audaciosas dos parlamentos, pois os corajosos que enfrentavam tiranias e ilegalidades são os atuais Joselino Barbacena da Escolinha do Professor Raimundo – aquele que não quer que ninguém lembre que ele está lá. Sumiram todos, com mandato e também os sem mandato foram para trás da moita.
Deputado que passou a vida se opondo a desmandos e erros de governos, agora vota por se ajoelhar ao novo Tribunal Político e manda prender seu colega deputado que falou palavrões.
Senador milionário que passou a vida no Senado dando voz à razão, agora é aliado pusilânime de fanfarrões hipócritas com dois pés enfiados em falcatruas pendentes no STF ou na justiça de seus estados, conduzindo harmoniosamente juntos aquele monstro amazônico de nome CPI circense. CPI cujo comportamento da maioria de seus membros é de verdadeiros nephilins na sala dos fundos da delegacia de polícia de uma república das bananas interrogando menores de idade mediante tortura.
Eis aí outro vazio por onde também estes se imbricam como larvas nos palácios do novo PJP para compartilhar o mesmo chá do poder conspurcado. Mas a velha imprensa não vê nada disso. Está tudo certo para quem passou a ser uma mera porta voz deles. Também não vê nada de mais no golpe reconhecido pelo ministro e segue sua saga ufana, diariamente desinformando a população em perfeita harmonia com o PJP.
Outro verdadeiro e enorme poder criado pela Constituição Federal, o Ministério Público, igualmente está dando milho aos pombos. O MP, que tem a missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, na qualidade de instituição autônoma e independente que é, também não vê nada de errado. Onde houver uma desordem jurídica, um atentado ao regime democrático, uma violação aos direitos sociais e individuais mediante abuso de autoridade, lá deveriam estar os missionários membros do Ministério Público (Art. 127 da CF).
Mas o que fazem eles diante de tantas violações por ordem do PJP e dos prefeitos e vereadores durante a pandemia? Permanecem silenciosos em seus castelos no país inteiro. O que fazem diante de tantas violações do PJP contra jornalistas, pessoas do povo, blogueiros e deputados? Silenciam, anuem. O que fazem diante de tantas invasões de competência do PJP contra os outros poderes e, agora, diante da confissão do ministro, de que tomaram o poder político com a ridícula narrativa de que eles são o poder moderador de um semipresidencialismo? Aquiescem mansamente, aliando-se ao PJP.
Voltando à base das premissas da democracia até então construída no Brasil, não seria necessário ir além do artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Este poder é plenamente expressado no Presidente da República eleito pelo povo, o qual é, conforme a mesma Constituição e ao mesmo tempo 1) O Chefe de Estado, 2) O Chefe de Governo e 3) O Comandante em Chefe das Forças Armadas. Assim, no Brasil o poder nasce do voto expressado no Presidente da República eleito pelo povo, para fazer a gestão do país – à que se chama governo. Aqui está o poder, a fonte primária do poder de governar.
O Poder Legislativo, igualmente eleito pelo povo, tem o poder de legislar e até fiscalizar o Executivo, mas não tem o poder de interferir nele, tampouco impedir que ele exerça seu poder popular constitucional. Ao contrário, tem a obrigação de pautar os projetos que o levaram a ganhar as eleições, e votar.
Por outro lado, há um terceiro poder que não tem votos, não tem povo e é por natureza inerme. Embora a estatura de poder do Judiciário seja questionada por muitos que julgam que ele deveria ser considerado apenas um Departamento de Estado, exatamente por não ter origem no povo, no processo democrático, ainda assim aqui no Brasil ele é um poder constitucional para os fins a que deve se dedicar constitucionalmente – processar e julgar a litigiosidade popular e zelar pela Constituição.
Executivo e Legislativo não podem interferir neste terceiro poder, ainda que ele seja estacionário e simbolize o chamado estado profundo, sem qualquer vínculo de governança com o poder emanado do povo – de gestão, de políticas públicas, das mudanças propostas em campanhas políticas. Por outro lado, naturalmente, muito menos este poder, até pela sua natureza distante da sociedade, distância esta muito bem simbolizada pelos olhos vendados da emblemática Themis, a sua “deusa da justiça”, jamais poderia interferir nos dois poderes popularmente constituídos – nem no gabinete do Chefe de Governo, do Chefe de Estado e do Comandante em Chefe das Forças Armadas, bem como também não no Legislativo – na Câmara Federal e no Senado Federal.
Mas o que emergiu do pântano em 2019 foi outra “realidade” que não queríamos ver: não há um governo governando porque o novo Poder Judiciário Político não quer que o governo governe; porque parte do poder legislativo também não quer que o governo governe e porque a velha imprensa é a porta voz destes que não querem que haja um governo governando. E todos harmoniosamente preferem encurtar o mandato do Poder Executivo ou impedir sua recondução.
E quando não entendemos as razões do comportamento humano – neste caso negando leis e invadindo outras esferas de poder, tudo com tanta ilegalidade, violência e ineditismo, só há duas possíveis motivações: poder ou dinheiro. Ou ambos.
De lá para cá passamos a entender o que disse a Clarice quando cravou seu imemorável “…ver é irreversível…”. Pode demorar, mas um dia acontece. Agora vemos com clareza porque a realidade anterior a 2019 no Brasil funcionava tão bem até nos próprios conflitos. A perfeita harmonia negociada deixava um ou outro morto no caminho, mas seguia sua sanha. A democracia era uma beleza fluida e plena, a imprensa era livre, tudo perfeitamente conforme e convergente na República. Deputados e senadores harmonizados, governadores e prefeitos harmonizados, a velha imprensa harmonizada, partidos políticos harmonizados, sindicatos harmonizados e artistas harmonizados. Não era qualquer impeachment que impedia o funcionamento da máquina, e tudo se ajeitava em harmonia em seguida.
De uma hora para outra alguém falou em independência entre os poderes e aquela harmonia acabou, a democracia sucumbiu e o jornalismo morreu.
Só não sabíamos que aquele remédio amargo que temos experimentado gota a gota, quase que diariamente desde então, era um veneno. Chegara a “pior das ditaduras” prevista por Ruy Barbosa: a ditadura do judiciário.
Esta nova realidade agora mansamente aceita pela maioria do próprio povo e pela velha imprensa – o desmanche dos poderes, o novo Poder Judiciário Político, a falta de liberdade e de estado de direito, tudo em meio à pandemia fazendo uma tempestade perfeita – está simbolizada na expressão de uma mulher, ainda ontem, em um diálogo frugal com uma conhecida: “Por mim, usar máscaras deveria ser uma obrigação de todos para sempre. Eu vou continuar usando máscaras para sempre.”
Ela não precisa de liberdade. Ela precisa de máscara. A liberdade só é cara para quem precisa dela. Ela não precisa de estado de direito e democracia, que só são caros para quem os precisa. E são muitos os que não se importam com isso.
Os velhos deputados, senadores, juízes, a velha imprensa e aquelas entidades que pediam liberdade e democracia, na verdade não se importam com liberdade e democracia. Eles precisavam e ainda precisam da velha harmonia. Para isso vale o esforço e a “coragem” do PJP, da imprensa, da CPI e todos os aliados do golpe.
Aos que se importam, é preciso a coragem reversa e equivalente à deles. É preciso entender que antes os poderes harmoniosos tinham a coragem de fazer planejamentos minuciosos e assaltavam bancos estatais e empresas estatais. Hoje vale tudo para trazer de volta a harmonia entre os poderes, agora sob nova direção – a do Poder Judiciário Político, onde a democracia, eleições e transparência não são tão importantes. Aos que se importam, importa saber o que vão enfrentar, o tamanho da coragem e a que preço.
Foto: Cristiano Mariz/Reprodução