Admitir o outro – o estrangeiro, o diferente, o exótico, o esquisito e, para resumir, o inimigo (aquele que deve ser corrigido ou simplesmente eliminado na sua recalcitrância ou reacionarismo), é mais familiar do que, aprofundando a busca, descobrir que o “outro” é um alternativo.
É aquele que faz o mesmo que nós, mas de outro modo. Descobrir modos equivalentes de fazer uma mesma coisa como, por exemplo, instituir um novo modelo de Previdência ou governar liquidando mecanismos aristocráticos e disfuncionais num regime republicano, pode ser chocante.
O relativo desconcerta porque revela que o mundo (ou um mesmo país) tem modos alternados de viver a vida. E alternâncias exigem mais compreensão do que julgamentos.
Os mais eurocentrados e etnocêntricos pensam que comer com garfo e faca é progresso. É mais “educado” no sentido brasileiro habitual do que comer com as mãos. Mas eu comi com as mãos entre indígenas e no Japão e sei que há etiqueta em todo comer, como – aliás – há em todo o gesticular humano.
Eu sempre soube que era um “outro”. Comecei a ter essa consciência quando me descobri “criança” pelos idos de 1940. Tempos da Segunda Guerra Mundial e do nascimento do meu quinto irmão e meus amados pais reforçaram o meu papel como “irmão mais velho”, o primeiro filho do casal, o que deveria – pobre de mim – ser o exemplo.
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Todo primogênito é ansiosamente esperado, mas logo pode ser visto como um maravilhoso estorvo porque neném dá muito trabalho e exige contínua atenção. Conforme aprendi, lendo sobre a preponderância da primogenitura em muitas sociedades, essa primazia tão popular nos seus aspectos positivos (o primeiro filho é o herdeiro do Reino…), o primogênito produz uma reação muitas vezes sofrida, pois é o elemento que rompe com o laço conjugal alegre e legitimador de uma sexualidade permitida e até mesmo encorajada. Não é tranquilo passar de dois para três…
A transição do papel de marido e mulher para o de pai e mãe, realizada com o nascimento do primeiro filho, é um rito fundamental em muitos sistemas culturais.
Quando eu passei de filho único a filho mais velho percebi uma alternativa: meus pais poderiam ter tido apenas um filho…
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Por uma lógica semelhante, pensa-se no Brasil que se pode ter uma democracia fundada na alternância de maioria com o devido respeito à minoria, sem imaginar que um novo governo implica outros atores e estilos de governar. E que foi justamente esse compromisso com o alternativo que o elegeu.
Democracia é algo do povo, mas não é sinônimo nem de populismo nem de má-fé. O populismo é, como se sabe, o uso e abuso da ignorância de massas denominadas de “povo” (ou, mais dramaticamente, de “povo pobre e sofrido”) pelas camadas hierárquicas dominantes. No caso dos países nos quais o populismo como estilo de dominação é dominante – prova isso o tal governo de coalizão usado como sinônimo para um estilo regular e, quem sabe, exclusivo de governar – no Brasil. Mas além da ignorância, que bloqueia estruturalmente as escolaridades, há o personalismo colado às ideologias. Tal relação vai dos velhos imperadores e tiranos aos ditadores que os reproduziam. É o modelo do pai dos pobres e dos filhos mais velhos. São, por isso mesmo, formas de dominação mescladas a pessoas. O único regime inteiramente descolado de seus agentes, sobretudo dos seus agentes supremos, é o democrático-liberal que, como bem viu Tocqueville, com a surpresa dos aristocratas, fundava-se numa desapropriação da política como força bruta e confronto selvagem, e a situava como um serviço coletivo.
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O que assisti no encontro de Paulo Guedes com a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara foi um show de competência do ministro ao lado de uma furiosa reação dos seus adversários. Esses conhecidos salvadores do Brasil, hoje esgotados tanto por velhas ideias quanto, sejamos comedidos, por suas malandragens.
O chamado “bate-boca” é uma censura que, pela força do grito, impede o outro de falar. O bate-boca é o justo oposto da ordem igualitária na qual cada cidadão tem hora e vez de falar. O livro Rules of Order, publicado na América em 1876, pelo general Roberts, deveria, com a devida vênia, ser lido por todos os nossos supostos parlamentares. Discutir é uma coisa, tentar assassinar um ministro é outra.
Fonte: “Estadão”, 10/04/2019