Assisto consternado à guerra do Rio. A peste, quando vira crise, pode ser contida, mas ela – como muito bem têm enfatizado as autoridades do Rio de Janeiro – não acaba, pois o primitivismo do desumano acompanha a humanidade em qualquer tempo e lugar. E a peste brasileira tem como traço principal a absoluta ausência de ter a coragem de pensar o futuro com bom senso, sem o aval malandro das utopias fáceis que definem o populismo. Essas utopias que aplacam a preguiça porque é duro construir instituições e honrar as leis. Preferimos o reagir ao prevenir. Estou vendo ao vivo e em cores como somos tocados por “ordem e progresso”, mas também pelo realista: “É ilegal, e daí?” Faço votos para que a bandeira prevaleça.
Como revelei faz tempo, o decidir não decidir conduziu a um estabelecimento excepcional do ambíguo como um valor em nossa sociedade. Vivemos o igual no desigual. Fizemos a aliança da hierarquia com o individualismo igualitário movido a competição eleitoral, mas sem partidos políticos responsáveis. Essa sacanagem que inventa os “caras” – essas superpessoas -, que dentro ou fora do governo fazem o que querem. Se eles nada fazem, além de serem condescendentes consigo mesmos, por que deveríamos romper a corrente? Aliás, eis a pergunta que está nos tiros: como distinguir nessa corrente os elos podres (como corajosamente denunciou Luiz Eduardo Soares) e os aros perfeitos?
Há uma programada estupefação. Logo teremos a perplexidade dos automóveis pilotados por loucos, sem ruas para circular, e a dos políticos com alta responsabilidade, mas sem projetos, e tocados exclusivamente pela gana de permanecer no poder. A crise que vejo na televisão obriga a tomar uma atitude. O gigante continua adormecido, mas – vejo isso na fala das autoridades estaduais (as federais sumiram!) – começa a se mexer.
Quando a cara briga com a coroa, de que lado fica a moeda? Se o corpo recusa a alma, para onde vai a consciência? Seria possível um mundo onde o Bem dominasse absolutamente o Mal? Num mundo sem morte, onde estaria a força claudicante, mas maravilhosa, da vida que sabe do seu implacável parceiro?
Fomos acordados pelos bandidos que reagem à perda de seus territórios. Vemos um drama de bandidos e mocinhos e não mais os desfiles de carnavais e o ensolarado das praias cuja norma se resume em tudo permitir. A favela (hoje “comunidade”, pois nós adoramos os eufemismos que douram os venenos), que ficava pertinho do céu e um dia desceria para ensinar os da praia a ginga perfeita do samba, baixou na forma do tráfico de drogas. Qual era o destino de tanta cocaína e maconha? Essa é uma pergunta que dói, mas não pode calar.
Quem inventou a malandragem como um estilo de navegação social? Como uma maneira de pertencer que não fere frontalmente a lei, mas – em compensação – não se sente obrigada a segui-la porque, afinal, o malandro está sempre em cima do muro: ficando para ver como é que fica? Quem merece ser herói de uma novela? O babaca que quer ser professor (ensinando porque não sabe como se faz); o artista genial (e por isso mesmo justificadamente descalibrado); ou o homem de negócios movido a ambição e a superconsumismo que não hesita em enganar e mentir para ficar rico. Que modelos a serem seguidos estamos apresentando para nós mesmos a todo o momento? Quem pode dizer que é branco, negro ou índio numa sociedade na qual o casamento com o “outro” (a negra escrava e a índia a ser dizimada ou convertida) foi um método de uma colonização relacional e, depois, de uma desigualdade vivida como o ar que se respira?
Se você fica assombrado quando um pobre devolve uma mala cheia de dólares, pois esse cara só pode ser um otário; se você considera babacas os que seguem a lei; se você tem dúvida se mentir é humano ou se o humano é uma mentira; se você acha que é preciso tocar fogo no Brasil para reformar a polícia, separando-a definitivamente dos bandidos; se você acredita que a igualdade e a liberdade, bem como a democracia liberal, são ardis burgueses; se você imagina que a tentativa de erradicar a miséria é uma sedução dos esquerdistas comedores de fetos, então você não entende nada.
Porque todos os ideais são causas perdidas. Como a comiseração e o amor, eles têm de ser inventados e descobertos a cada dia. Por isso, eles exigem algo precioso e desconhecido dos governantes brasileiros: a capacidade de dizer não primeiro a si mesmos e depois aos outros. Pois o mais importante no jogo entre liberdade e igualdade é descobrir o limite que concilia o privilégio com o dever. Aí está a chave da democracia liberal que se faz e refaz a cada dia.
Se não fôssemos tão esquecidos, não estaríamos vivendo esta tempestade de confrontos. A vergonha não está só nos bandidos – abomináveis, sem dúvida. A vergonha é deixar que as pessoas virem bandidos e que bandidos não sejam presos. É ter um Estado incestuoso porque “come” indiscriminadamente os nossos recursos. É estar sujeito a um sistema público que precisa de uma crise para repensar o tempo perdido. Tempo que todos queremos ver recuperado.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 01/12/2010
Roberto DaMatta participará do 6º Colóquio do Instituto Millenium.
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