Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda faz uma análise precisa da nossa formação cultural: “Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador (…) Para uns, o objeto final, o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore (…) O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, tem sentido bem nítido para ele (…) As energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros, as energias que visam à paz, à estabilidade, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosas e desprezíveis para eles (…) Entre esses dois tipos não há, na verdade, tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical” (página 44, Cia. das Letras, reedição de 2004). Nesse sentido, o “esforço lento, pouco compensador e persistente” é encarar o gasto público. Em 1991, a despesa corrente do governo central sem as transferências a Estados e municípios, foi menos de 10 % do PIB e deverá ser aproximadamente 19 % do PIB em 2007. É esse o grande nó do país. Há quem insista em acusar os juros pelos problemas fiscais das últimas décadas, mas o fato é que, desde que a contabilidade dos juros reais passou a ser confiável, a partir de 1985, na média de 5 anos do período 1985/89 o Brasil gastou anualmente com juros reais da dívida pública 6 % do PIB e, na média anual de 2003/2007, terá gasto os mesmos 6 % do PIB. É legítimo argumentar que os juros poderiam ser menores, mas quem diz que os problemas do país se devem a que o Brasil gasta cada vez mais com juros em detrimento do gasto social está simplesmente errado. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) reflete dois aspectos louváveis por parte das autoridades. O primeiro é a ênfase no crescimento: é positivo que o baixo dinamismo da economia brasileira tenha sido alçado à prioridade das preocupações do próprio presidente da República, porque o país não pode se conformar com o ritmo dos últimos anos. O segundo é a consciência de que na raiz desse problema está o escasso investimento e que parte do aumento do investimento requerido para o país crescer mais terá que vir do setor público. O país precisa aumentar a taxa de investimento dos 20,5 % do PIB de 2006, até 24/25 % do PIB em 2010. Para isso, aumentar a poupança pública é vital. Parte importante disso virá da redução da despesa de juros, mas não basta. No documento “Uma agenda para o crescimento econômico e a redução da pobreza”, publicado como Texto para Discussão 1234 em 2006 pelo IPEA, supunha-se uma queda da despesa com juros da ordem de 3 % do PIB entre 2006 e 2010. Entretanto, nele havia também uma redução da despesa corrente de 1 % do PIB entre esses anos. A lógica era conter o gasto corrente, para criar condições para uma queda contínua das taxas de juros reais e abrir uma “cunha” para o investimento. No cenário traçado, a poupança pública aumentava 3,3 % do PIB entre 2006 e 2010, por conta da combinação da redução de juros com novas reformas. Com isso, a taxa de investimento nesses mesmos 4 anos aumentava quase 4 pontos do PIB, estimulada também por uma pequena poupança externa. O que representa o PAC, comparativamente a essa perspectiva? Ele é um passo na direção certa e inclui a contenção das despesas com pessoal – tema crucial e cuja importância vem sendo subestimada por alguns dos críticos do plano – mas é importante que seja seguido por novos avanços. As questões centrais são: a) qual será a receita de CPMF nos próximos anos?; b) qual será a evolução da despesa além da de pessoal e INSS consistente com as metas primárias e de investimento?; c) o que acontecerá se o PIB não crescer 5 % a.a. nos próximos 3 anos? Dados os compromissos assumidos em relação a certas despesas, haverá cortes para compensar a menor receita?; e d) qual será o reajuste do piso previdenciário depois de 2011? A regra de reajuste pelo PIB pode fazer sentido até 2010, mas é explosiva a longo prazo. Este último item é crítico – além da melhora do marco regulatório – caso se queira induzir o setor privado a entrar em projetos de parceria com o governo. Se houver o receio de que o setor público poderá ser inviabilizado daqui a 10 ou 20 anos por uma regra fiscal que é uma bomba de tempo, será difícil convencer investidores a “enterrar” recursos bilionários em projetos para os quais em 2015 talvez o Estado possa ficar sem condições de cumprir seus compromissos. Seria de bom tom que a partir de 2011 o piso previdenciário fosse apenas indexado à inflação. O aposentado deve ganhar o valor pelo qual ele contribuiu, como ocorre no resto do mundo. A pergunta que resume tudo continua sendo: como o governo irá fazer para conter o gasto corrente? Eu acrescentaria: vamos continuar permitindo que quem se aposenta por tempo de contribuição passe a receber a aposentadoria do INSS aos 54/55 anos, sendo 52 para as mulheres, tirando com isso recursos do investimento público? A Previdência é a grande ausente do PAC. O Fórum sobre o tema é uma boa idéia, mas o governo terá que estar disposto a enfrentar aqueles que têm se oposto vigorosamente à reforma – e, nesse caso, o inimigo mora em casa. O noticiário tem apresentado o PAC como o desfecho de uma estratégia destinada a alavancar o crescimento. Entretanto, para que o país possa crescer a taxas mais próximas às que têm sido exibidas há anos por outras economias, o PAC não pode ser o final, mas o começo: não o último passo para o crescimento, mas sim apenas o primeiro, que deveria ser seguido por outros. Como diria um analista hispânico, “el PAC, solo, es poco”.
Valor Econômico, 29 de janeiro de 2007
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