Trump é protecionista? Bolsonaro é liberal? A Itália sairá do euro? Polônia e Hungria serão ejetadas da União Europeia (UE)? O maior enigma que cerca o nacional-populismo contemporâneo é sua relação com a economia.
Esqueça, por um momento, os afagos de Trump em neonazistas e supremacistas, a apologia de Bolsonaro a torturadores da ditadura militar, o encanto dos fascistas italianos pela Liga, as tentativas dos governos húngaro e polonês para reescrever a história do Holocausto.
Deixe de lado, também por um momento, a xenofobia, o desdém pelo drama dos refugiados e a retórica contra imigrantes. Não que nada disso seja importante. Pode bastar para justificar a oposição a qualquer um desses políticos. Mas o escândalo despertado pela retórica virulenta dos nacional-populistas não deve ofuscar o enigma econômico que os cerca.
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Há uma incógnita sobre a relação deles com o livre-comércio. O caso mais notável é sem dúvida Donald Trump. Apesar da guerra comercial declarada contra China e UE, ele preside ao período de menor desemprego e maior crescimento na história recente dos Estados Unidos – 4,1% em resultados anualizados, segundo os dados do último trimestre.
Trump parece defender o protecionismo mais rasteiro. Sempre viu ameaça na competição dos países asiáticos. Nos anos 1980, sua nêmese era o Japão. Agora é a China, contra a qual deflagrou uma escalada tarifária que resultou em retaliações prejudiciais à própria agricultura americana – e o levaram a anunciar subsídios de US$ 12 bilhões para não perder eleitores em estados agrários.
No tabuleiro global, Trump age como o investidor imobiliário que vê em toda disputa um jogo de soma zero, aposta alto e blefa até levar o oponente a ceder. Foi essa atitude que o levou à bancarrota nos anos 1990. Mas que também trouxe UE e China de volta à mesa de negociação, com base em promessas de zerar tarifas (no primeiro caso) ou de rever a escalada (no segundo). Trump crê ter cacife para dobrar seus adversários. Por enquanto, a força da economia americana lhe dá razão.
Um liberal clássico ponderará que os efeitos nefastos de suas políticas surgirão com o tempo. Assim como o Brasil levou anos até sentir a ressaca da política econômica desastrada de Dilma Rousseff, dirá o liberal, também a economia americana demorará a sofrer as consequências do protecionismo trumpista. A partir do momento em que ela fraquejar, a China se aproveitará para consolidar domínio ainda maior sobre os mercados planetários.
Parte do cacife de Trump está no impulso que o corte de impostos deu ao consumo e ao mercado interno (algo como 2,5 pontos percentuais no crescimento de 4,1%). Outra parte deriva do crescimento das exportações, uns 13%, resultado da corrida de compradores estrangeiros para antecipar-se às tarifas. Pode haver dúvida se a primeira parte se sustenta numa economia mais fechada (mais provável que não). Quanto à segunda, não há nenhuma. Ela desaparece.
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O cacife chinês, ao contrário, resta intocado. Se, em vez de retaliar comercialmente, a China simplesmente vender os trilhões de dólares que detém em títulos do Tesouro americano, derrubará o dólar. Isso incentivará exportações e inibirá importações – como quer Trump. Em contrapartida, os Estados Unidos pagarão mais caro para tomar emprestado no mercado o dinheiro com que financiam sua esbórnia fiscal (a dívida pública americana deverá fechar 2018 em US$ 24,6 trilhões, o dobro de antes da crise financeira de 2008).
Não é um acaso que o comitê de política monetária do Fed, reunido hoje e amanhã para decidir sobre a taxa básica de juro, hesite em mantê-la no patamar de 2% ao ano, o mais alto desde a crise. Uma eventual alta atrairá recursos internos para poupança, reduzirá o consumo e os investimentos. A economia americana perderá produtividade e diminuirá o ritmo. O déficit comercial, que tanto atormenta a visão mercantilista de Trump, no fundo não passa de uma estratégia confortável para manter o nível de consumo e atrair capital externo.
Por isso mesmo, a atitude de Trump diante da globalização, ambivalente no campo comercial, sempre foi inequívoca no financeiro. Em nenhum momento, ele questiona a livre circulação ou a desregulamentação no mercado de capitais, a que vários analistas atribuem a bolha que estourou em 2008. Para um econonomista crítico do liberalismo, como Dani Rodrik ou Joseph Stiglitz, certo grau de protecionismo é até aceitável, mas não basta para conter os excessos da globalização. O que importa, para eles, é disciplinar os abusos do mercado financeiro.
Os movimentos nacional-populistas, a que a lógica de Trump está filiada, defendem uma visão antagônica. Costumam fazer uma distinção entre a “globalização” – fenômeno a que atribuem natureza exclusivamente econômica – e “globalismo” – o conjunto de instituições políticas criadas para regular as relações entre as nações. De acordo com essa visão, o problema está no segundo, não na primeira; na intromissão indevida de burocratas da UE, da ONU ou da OMC na políica interna dos países, não na abertura comercial ou financeira em si.
Derivam daí o enfoque obsessivo nas questões que afetam o mercado de trabalho (como políticas migratórias ou regulatórias), a retórica e a verborragia de Trump contra os organismos internacionais, até mesmo aqueles desenhados sob medida para defender interesses americanos, como Otan, FMI ou OMC.
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O simplismo pedestre dessa visão fica evidente nas negociações do Brexit. Os britânicos acreditaram, ao aprová-lo em plebiscito, ser capazes de manter as benesses da liberdade comercial e do acesso aos mercados europeus sem pagar o preço político de pertencer à UE. À medida que colocam a ideia em prática, percebem que isso é impossível.
Os defensores do Brexit em sua versão “hard” foram ejetados do governo da primeira-ministra Theresa May por discordar da manutenção das regulações necessárias para o acesso aos mercados. Em parte, têm razão: se era para submeter-se às regras da UE, de que adianta sair então?
Não há, obviamente, como driblar a contradição essencial à visão nacional-populista da economia: as instituições globais que eles tanto abominam são a melhor (quando não a única) forma de mediar os conflitos inerentes às negociações internacionais. Desprezá-las ou romper com elas equivale à submissão – ou, na pior hipótese, à guerra.
Conciliar o liberalismo financeiro, a defesa retórica do livre-comércio com nacionalismo, protecionismo e mercantilismo permanece um paradoxo que os defensores do Brexit ou Trump ainda não conseguiram resolver. A realidade mostrará se descobrirão uma saída inédita e insólita para a economia global – ou se comprovarão as críticas tanto dos liberais clássicos quanto de seus opositores.
Fonte: “G1”, 01/08/2018