Sempre fui contra o proselitismo político e religioso dentro escola. Tendo sido educado durante o regime militar, fui vítima de ambos. Lembro até hoje das aulas de educação moral e cívica, onde era vetado discutir política ou religião, de ter aprendido que os brasileiros tinham uma índole pacífica, eram hospitaleiros e, devido a uma ampla miscigenação, não haviam sido afetados pela chaga do racismo, como os norte-americanos. Também aprendi que minha religião era mais generosa e verdadeira do que as demais.
Com o tempo fui percebendo que as coisas não eram tão bacanas assim. Canudos, descrito por Euclides da Cunha, deixou claro que o Estado brasileiro poderia ser brutal com seus inimigos, mesmo que famintos e desarmados. A escravidão, denunciada por Joaquim Nabuco, foi sim uma chaga. A miscigenação, mais do que uma consequência da doçura do mel de engenho, decorreu da violência sexual praticada sistematicamente contra mulheres negras. Também descobri que, em nome da religião, inclusive daquela que determina “amar ao outro como a si mesmo”, muitas mulheres haviam sido queimadas, guerras travadas e discriminações praticadas. Ou seja, ao proibir que discutíssemos política e religião nas aulas, alguns de meus professores estavam, na realidade, praticando a forma mais perversa de proselitismo. O único mito que sobreviveu dessa época foi marechal Rondon, que de fato protegeu os indígenas.
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Minhas filhas felizmente tiveram o privilégio de estudar num tempo de mais liberdade. Tenho certeza de que nem todos os seus professores foram capazes de deixar a religião e a ideologia fora da sala de aula. Porém, num ambiente plural, elas tiveram mais oportunidades do que a minha geração de ouvir distintas perspectivas, estudar diferentes interpretações da realidade ou de eventos históricos, confrontá-las e discuti-las de maneira aberta, sem policiamento, de forma a poderem formar seus próprios juízos e forjar suas identidades.
O fato é que não existe escola ou ensino neutros. Da perspectiva pedagógica, é um falso dilema. Há escolas conscientes e que buscam mitigar esses vieses políticos, dissuadindo o proselitismo e estimulando o pluralismo, e escolas hipócritas, que buscam eliminar o pluralismo e conferir ao proselitismo ares de neutralidade, como na minha infância.
+ Leandro Narloch: Esquerda precisa dar resposta consistente ao Escola sem Partido
Da perspectiva jurídica, a discussão da Escola sem Partido não faz nenhum sentido. A Constituição já resolveu o problema. A educação deve visar o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, devendo pautar-se pelos princípios como a “igualdade de acesso”, a “liberdade de ensinar e apreender”, o “pluralismo de ideias”, a “valorização dos profissionais de ensino”, a “gestão democrática” e a “garantia do padrão de qualidade”. Logo, não há espaço pedagógico ou jurídico para que o Congresso Nacional aprove legislação que restrinja a liberdade de professores e alunos. Se o fizer, caberá ao Supremo declarar inconstitucional a medida.
Ao invés de gastar tempo e energia em uma discussão estéril como a da Escola sem Partido, o parlamento, que aprovou a Base Nacional Comum Curricular para a educação, deveria juntar os que são do partido a favor da escola para assegurar a implementação desta importante legislação, de forma a garantir um verdadeiro avanço no padrão de qualidade do ensino a que os nossos jovens têm direito e que será essencial para o desenvolvimento do Brasil.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 24/11/2018