Logo na semana que vem, dia 17, entra no ar o horário eleitoral no rádio e na televisão. Somente a partir dessa data os candidatos terão direito de pôr a sua cara e a sua voz nas emissoras para fazer propaganda de si mesmos, das bandeiras que defendem e dos partidos que os apoiam. Só no dia 17 entrarão oficialmente em campanha pelas ondas eletromagnéticas. Antes disso, nada feito. A lei não deixa. Como costuma dizer um antigo árbitro de futebol que virou comentarista esportivo, “a regra é clara”: os postulantes a cargos eletivos não têm permissão legal para a propaganda antecipada. Os que têm programas de rádio ou televisão – e mesmo aqueles que têm espaços regulares em qualquer atração de qualquer emissora – precisam se afastar dos holofotes e dos microfones tão logo sejam sagrados candidatos nas convenções partidárias. Não há dúvida: a norma, que de fato é bem clara, vale para todos os candidatos e para todos os programas.
Para todos, a não ser… Bem, a não ser para os que já têm cadeiras no Congresso Nacional e agora tentam a reeleição com a ajuda de um noticiário bem antigo chamado A Voz do Brasil. Aí a conversa é outra. Dentro desse programa, os parlamentares federais em busca de novo mandato estão desde sempre em plena campanha, ainda que procurem disfarçá-la de prestação de contas desinteressada. Essa rotina não sofre nenhum abalo quando começa oficialmente o período eleitoral. A Voz reserva metade de sua hora diária para os congressistas, de tal sorte que os candidatos à reeleição do Poder Legislativo podem falar à vontade, podem enaltecer suas alegadas realizações, podem elogiar-se mutuamente, comentar as notícias e ficar em evidência. Mais do que os outros candidatos que porventura ainda não disponham de mandato. A lei que impõe restrições severas ao uso que os candidatos, digamos, normais podem fazer do rádio e da televisão não alcançou com seu rigor os candidatos à reeleição no Legislativo. Estes seguem tranquilos, fiéis depositários de mais esse privilégio com que a comunicação pública no Brasil costuma brindar aqueles que já têm seu naco de poder.
Examinemos um pouco mais de perto a nervura dessa prerrogativa indevida. Vejamos em primeiro lugar o que diz a nossa legislação. Depois disso, tentemos dimensionar o apetite de reeleição numa das Casas Legislativas de Brasília, a Câmara dos Deputados.
A lei é clara, como já foi dito. No calendário eleitoral do site de Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o cidadão crédulo pode ler que, a partir de junho, ficou “vedado às emissoras de rádio e de televisão transmitir programa apresentado ou comentado por candidato escolhido em convenção (Lei n.º 9.504/97, artigo 45, § 1.º)”. O mesmo artigo, o 45, impede que uma emissora de rádio e televisão dê “tratamento privilegiado a candidato” durante o período eleitoral. O objetivo é fácil de entender. O legislador quis evitar que o poder dos meios de comunicação desequilibre a formação livre da vontade do eleitor, o que não deixa de fazer sentido. Só é estranho que A Voz do Brasil tenha ficado de fora desse princípio. Ou talvez não seja estranho coisa nenhuma: ela está aí para isso mesmo, para preservar os interesses corporativos dos parlamentares eleitos, interesses que são mais fortes do que as diferenças partidárias que deveriam separá-los. Graças a esse vazio legal conveniente, os deputados que são candidatos a permanecer onde estão, de todos os partidos, usam fraternalmente o noticiário dos Poderes da República para se promover durante a campanha.
É bom lembrar que não é incomum que um deputado federal brasileiro tente – e consiga – se reeleger, uma, duas, três ou mais vezes. Agora, no ano de 2010, o quadro é típico. Este jornal e outros órgãos de imprensa já noticiaram que, dos 513 deputados federais, 420 tentarão a reeleição e 59 disputarão outros cargos. Apenas 34 não disputarão as eleições de outubro. Isso significa que 81,87% dos deputados federais tentam se reeleger em 2010. Significa também que, ao menos dentro do anacrônico e monocórdio noticiário oficial, eles entram na disputa usufruindo vantagens em relação aos candidatos sem mandato. Significa, por fim, que as autoridades encarregadas de zelar pela observância da lei durante a campanha talvez não tenham como agir contra essa gritante distorção do sistema pátrio de comunicação pública.
Uma vez mais, estamos soterrados por um fato consumado. Não há o que fazer, além de lamentar. Aos brasileiros interessados no equilíbrio e na lisura do processo eleitoral resta a esperança de que A Voz do Brasil, que une a obrigatoriedade inamovível à chatice caprichosa – o horário reservado à Câmara dos Deputados se assemelha à leitura acelerada de uma lista telefônica, empenhado que está em citar o maior número de deputados a cada minuto -, talvez não faça grande diferença na contagem final dos votos. É mesmo possível, plausível e provável que, se tirassem o velho programa do ar, os eleitores iriam demorar a se dar conta. Enfim, é bastante razoável supor que A Voz renda poucos votos aos recandidatos, se é que rende algum.
Mesmo assim, apesar da irrelevância do programa em questão, a iniquidade eleitoral persiste e a diferença de tratamento é clamorosa. E é ainda mais chocante quando nos damos conta de que ninguém se incomoda. Em época de eleição, A Voz do Brasil avança em sua incrível sobrevida como um palanque à margem da lei, a serviço dos que já chegaram lá. Um palanque contrário à alternância no poder. Não se pode nem dizer que este seja mais um produto do “jeitinho brasileiro”, posto que o jeitinho, abençoado pelos de cima, dá um jeito provisório nas carências imediatas dos de baixo. Aqui estamos diante do jeitão espertalhão que aprofunda a aflição dos menores em benefício dos maiores.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 12/08/10
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