Nada menos que 72 milhões de latino-americanos escaparam da pobreza nos primeiros 14 anos deste século XXI. Em especial, no período que vai de 2003 a 2008, quando a região viveu o auge das exportações de alimentos, petróleo e minérios, o boom das commodities, a vida melhorou rapidamente para muita gente: a cada ano, oito milhões de pessoas deixavam de ser pobres. De 2009 a 2014, o processo continuou, mas em ritmo menos intenso: cinco milhões por ano superando a linha de pobreza, medida por uma renda diária de até US$ 4. Nos dois últimos anos, com a desaceleração econômica, o número de pobres voltou a aumentar na América Latina. E este é o grande risco para a região — conforme diz o Relatório de Desenvolvimento Humano para a América Latina, produzido pelas Nações Unidas.
Dos principais países, o Brasil é o mais vulnerável. Todos estão crescendo menos, mas apenas o Brasil está nesta severa recessão de dois anos seguidos. Descolou-se da tendência dominante.
A história recente foi bem parecida, quase igual. Nos anos 90, os principais países da AL fizeram as chamadas reformas liberais: controle da inflação, estabilização da moeda, equilíbrio das contas públicas (com os tais superávits primários), abertura moderada do comércio externo e maior aceitação do investimento externo, inclusive nas privatizações.
Essa foi a resposta a duas grandes crises dos anos 70 e 80: a das dívidas externas e do combinado inflação/déficits públicos.
Quando estavam arrumados, os países da região puderam se beneficiar largamente do efeito China. No início dos anos 2000, o Brasil mal exportava US$ 1 bilhão/ano para a China. Oito anos depois, ultrapassava os US$ 40 bilhões. Ficou rico, acumulou reservas.
A mesmíssima coisa aconteceu com os vizinhos de região. Foi nessa combinação que se deu a redução da pobreza e a ascensão de quase 95 milhões de pessoas às novas classes médias.
A expansão econômica (crescimento do PIB da ordem de 4,5% ao ano) foi a condição básica, claro. Isso ampliou o mercado de trabalho. Mas foi apoiada por políticas sociais, especialmente duas: educação, a colocação das crianças na escola; e transferências de renda.
Mas, por assim, dizer, a coisa não foi bem feita. A maior parte dos empregos criados estava no setor de serviços, predominantemente informal e de baixa qualificação.
Na desaceleração econômica, a situação piora. No Brasil, por exemplo, a criação de vagas com carteira simplesmente desabou de 2012 para cá.
Por outro lado, as transferências de renda via programas de governo e o que o Relatório da ONU chama de “pensão não contributiva” (casos do abono salarial ou aposentadoria rural no Brasil) foram responsáveis por 30% da redução da desigualdade. E isso tem um “limite fiscal”. Ou seja, com o fim do boom das commodities, os países perdem ritmo de crescimento e caem as receitas tributárias. Dito de modo simples: acaba o dinheiro do governo.
O Brasil é o exemplo negativo levado ao extremo. A despesa pública, não apenas com os programas sociais, aumentou sistematicamente acima do crescimento do PIB e, de uns anos para cá, acima da evolução das receitas. Resultado: o déficit de R$ 110 bilhões do ano passado e de R$ 170 bilhões esperados para 2016.
Além disso, a mudança da matriz econômica operada por Lula e Dilma terminou o serviço.
No período 2003/13, quando mantinha as virtudes da estabilidade fiscal e monetária, e usufruía do boom externo, o Brasil cresceu pouco acima de 4% ao ano. Foi bom, mas Peru, Colômbia, Chile e Argentina ainda fizeram melhor, com crescimento médio perto dos 5%. O México, atrasado nas reformas e muito dependente dos EUA, cresceu na média abaixo de 3%.
Já no período 2014/16, o Brasil desandou. A recessão por aqui é de 3% ao ano. Aqueles outros países registram expansão de 2,5% a 3,5%, menos a Argentina, em recessão, menor que a brasileira. Para 2017, a previsão indica que os outros crescem entre 2,5% e 4% (Peru), enquanto o Brasil pode chegar a 1% de expansão.
Onde a AL errou? Em dois pontos principais: na má qualidade da educação (não por acaso, os alunos deste lado pegam os últimos lugares nos testes internacionais) e na falta de poupança e investimentos. Exatamente o contrário do que fazem os emergentes asiáticos.
Nos períodos em que o mundo ajuda, a América Latina se aproveita, mas gasta mais em consumo do que investimento. E não consegue melhorar substancialmente a qualidade do ensino público. Quando a coisa piora, falta dinheiro. Mas, mantendo uma base de equilíbrio econômico, sem supostas novas matrizes, os outros países conseguem segurar um crescimento mínimo, com inflação controlada.
O Brasil conseguiu o pior desempenho.
Fonte: O Globo, 16/06/2016.
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