‘Deixai toda esperança, ó vós que entrais!’
(Dante Alighieri)
Dante Alighieri divide em três partes sua grande obra “Divina Comédia’, sendo a primeira ‘O Inferno’ e as outras duas o ‘Purgatório’ e o ‘Paraíso’. O Portal do Inferno não tem trancas, somente um arco com um aviso que adverte: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança, pois de lá não se pode voltar. A alma só tem livre-arbítrio enquanto viva, estágio em que pode optar pelo céu ou pelo inferno. Depois de morta, perde o discernimento e a capacidade de tomar decisões. Se na acepção de Dante não poder tomar decisões é estar morto, a sociedade brasileira está se aproximando de uma situação infernal. Há no ethos deste país, como que marcado em seu gene, um sentimento de menos-valia que se expressa perfeitamente no termo “hipossuficiência” o qual, não por acaso, encontra-se plasmado em seus códigos e leis. Hipossuficiente seriam os segmentos da sociedade que, por razões econômicas, culturais ou sociológicas, se revelam incapazes de tomar decisões por si próprios, merecendo uma tutela estatal reguladora.
O problema é que, no Brasil, não são apenas algumas minorias ou grupos específicos os considerados hipossuficientes, mas virtualmente a população como um todo. Segundo esta concepção, os trabalhadores, por sua própria natureza, não estão aptos a cuidar de seus interesses, então precisam de uma legislação que regule sua relação com o empregador. Os consumidores igualmente, para não serem lesados, necessitam de um código de defesa altamente protetivo. Trabalhadores e empregadores não sabem cuidar do fruto do seu trabalho, então é necessário que parte dos seus ganhos fique com o Estado para que este administre suas poupanças através da previdência pública. E já que o Estado precisa ser onipotente e onisciente neste país de despreparados, que lhe sejam providos inesgotáveis recursos através de uma feroz tributação.
É evidente que, neste ambiente, não demoraríamos para embarcar também na onda das regulações da vida privada dos indivíduos, definindo que tipo de comida estes podem ingerir e também os remédios que os médicos podem lhes prescrever. Tratar as pessoas como hipossuficientes não é senão o desdobramento de uma ideologia e e uma deliberada estratégia de dominação estatal que teima em se manter ativa no Brasil, a despeito de todas as demonstrações de que é a sociedade civil, com seu dinamismo e empreendedorismo, a responsável pelo desenvolvimento que impulsiona o país. Fariam melhor as autoridades se, ao invés de procurar tutelar a vida das pessoas “from de womb to the tomb” (do berço ao túmulo), investissem em campanhas inteligentes de esclarecimento, tratando- as como adultas, inteligentes e responsáveis por suas próprias escolhas, restituindo- lhes o livre-arbítrio. O que, na acepção de Dante, significa devolver- lhes a esperança, a vida e a própria condição humana.
Fonte: O Globo, 07/04/2011
Como que pode você chamar de hipossuficientes os trabalhadores aqui no Brasil, se eles que a partir de suas próprias organizações galgaram o mais alto poder na república?