A tendência já tem mais de uma década e pode ser captada estatisticamente. Em janeiro, a “The Economist” publicou um gráfico perturbador que expressa, em números, o declínio global da democracia. De 167 países classificados num espectro que se estende das democracias plenas até regimes autoritários, passando por democracias precárias e regimes híbridos, 89 experimentaram retrocessos. Só 5% da população mundial vivem sob democracias plenas, enquanto um terço habita em países autoritários. A maioria situa-se em pontos intermediários. O recuo rumo ao polo ditatorial decorre menos de golpes de força que da degeneração interna de sistemas políticos mais ou menos democráticos.
Na sua monumental “The History of Government”, S. E. Finer sintetiza os quatro tipos básicos de entidades políticas (Palácio, Fórum, Igreja e Aristocracia) e estabelece as suas potenciais interações. O Fórum é o sistema fundado na autoridade conferida pelos de baixo, que deve ser incessantemente renovada. Mas ele vive sob o risco permanente de se converter em Palácio, ou seja, no sistema que concentra a autoridade num soberano individual (imperador, rei, príncipe ou ditador). A transição acontece quando o governante alçado pelo povo consegue se desvencilhar do controle efetivo dos governados, perenizando-se no poder. É esse o mecanismo principal que, atualmente, provoca o declínio global da democracia.
Há dez anos, Larry Diamond alertou para a “recessão democrática”. As democracias precisam responder às necessidades dos cidadãos, se querem sobreviver, explicou. Numa linha paralela, William Galston registrou que, “para alguns”, a democracia liberal “pode ser intrinsecamente boa”, mas “para muitos, é apenas um meio para uma vida próspera, pacífica e segura”. No pós-guerra, por mais de meio século, os governos democráticos do Ocidente mantiveram-se fortes pois cumpriram o contrato implícito de atender a essas demandas. O recuo em curso, nos EUA e na Europa, decorre da quebra desse contrato.
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Giovanni Sartori não se deixou impressionar pelo hino do “fim da História” entoado nos anos 90. Diante dos seus acordes, argumentava que, após o desaparecimento do “inimigo externo” (o totalitarismo), as democracias enfrentariam um “inimigo interno”, que opera sinuosamente, sem contestar o princípio da vontade majoritária como fonte de legitimidade do poder. O nome do “inimigo interno” é populismo, conceito mínimo que não descreve uma ideologia, mas um estilo político: “o populismo venera o povo” (Ghita Ionescu).
Pela direita ou pela esquerda, os governantes populistas nascem de eleições livres, mas apelam à democracia para desmontá-la por dentro, vandalizando as mediações institucionais que asseguram o controle do poder pelos cidadãos. A “revolta contra as elites” assume formas diversas, mas aperta teclas compartilhadas. Trump manobra para erradicar as investigações judiciais sobre seus atos, enquanto se refere aos jornalistas como “inimigos do povo”. Na Polônia, sob o líder de facto Jaroslaw Kaczynski, e na Hungria, sob Viktor Orbán, governos populistas tentam submeter os tribunais à vontade dos Executivos. Na Turquia, Erdogan colocou os tribunais a seu serviço e, às custas de perseguições judiciais, destruiu a liberdade de imprensa.
O caso clássico é a Venezuela chavista. Chávez consolidou-se no poder por meio de sucessivas eleições e plebiscitos. No percurso, ao longo dos anos de elevada popularidade, sujeitou juízes e órgãos eleitorais às conveniências do regime “bolivariano”. Maduro completou a trajetória, instalando a ditadura em meio ao colapso econômico e social. Contudo, mesmo na etapa final, marcada pela virtual abolição da Assembleia Nacional, apelou ao “povo”, produzindo o simulacro de uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente por seus seguidores.
“Saberá a democracia resistir à democracia?”, indagou Sartori num de seus últimos livros. A questão não é retórica — nem alheia a nós. Da denúncia do “golpe parlamentar” (lulismo) ao chamado de um levante contra tudo e todos (Bolsonaro), a demagogia populista impregna a corrida eleitoral. O perigo real não está nos populistas, mas na carência de vozes democráticas dispostas a confrontá-los.
Fonte: “O Globo”, 24/09/2018