Ao longo dos anos, o setor de energia no Brasil tem sido vítima de uma política de planejamento de curto prazo. No primeiro choque do petróleo o governo lançou o programa nuclear, a “dieselização” da frota de veículos pesados por meio do subsídio tributário do diesel, o programa de óleos vegetais, o programa de carvão vegetal e a primeira fase do Proálcool, com a obrigatoriedade de misturar álcool anidro à gasolina. Tudo isso para diminuir o consumo de petróleo, já que na época o problema do País era o déficit na balança comercial.
Já no segundo choque, em 1979, as políticas de substituição foram aprofundadas com o lançamento do álcool hidratado para substituir a gasolina e o programa de eletrotermia, que visava a substituir o consumo de óleo combustível no setor industrial por eletricidade. De todos esses programas, o mais inovador foi o Proálcool. Durante a década de 1980, mais de 90% dos carros novos vendidos no Brasil eram a álcool. A partir de 1986, com a queda do preço do petróleo, no fenômeno conhecido como o contrachoque do petróleo, o álcool hidratado perdeu mercado para a gasolina e quase desapareceu. Bastou o preço do barril despencar para que os programas de substituição de petróleo sumissem do planejamento energético brasileiro, à exceção do programa de “dieselização”.
Com a chegada ao mercado dos carros flexfuel e o aumento do preço do petróleo, o álcool, agora chamado de etanol, ressurgiu com toda a força como substituto da gasolina. Os veículos flexfuel já representam 94% das vendas de carros novos. E a receita do sucesso é simples: com a nova tecnologia o consumidor é que dá as cartas, escolhendo o combustível que lhe for mais vantajoso. O crescimento das vendas de etanol tem sido tão forte que já se afirma que a gasolina é que será o combustível alternativo ao etanol.
O crescimento do consumo do etanol e o uso do bagaço de cana na geração de energia elétrica conduziram o Brasil a aumentar, ainda mais, a participação das fontes renováveis em sua matriz energética. Isso até serviu para o governo brasileiro propagandear aos quatro cantos do mundo que o País representava a vanguarda no uso de fontes renováveis de energia. E parecia que era mesmo verdade. Mas eis que no final de 2007 surgiu o anúncio da descoberta de petróleo na camada pré-sal e o governo mudou o seu discurso. Existe a possibilidade de o pré-sal mudar o rumo da matriz energética brasileira? Parece que sim.
Não há dúvida que as descobertas de petróleo na camada pré-sal são notícia alvissareira, mas podem levar a um retrocesso na matriz energética nacional. O anúncio da construção de seis refinarias pela Petrobrás para processar o petróleo produzido ameaça o etanol e as demais fontes renováveis, pois a promessa do governo de que os derivados produzidos serão exportados pode não ser cumprida. O mercado mundial de derivados apresenta sazonalidades no consumo e volatilidade de preços e há sempre o risco de essas refinarias passarem por momentos de ociosidade. Nessa situação, pode ser mais interessante para a estatal inundar o mercado interno com derivados a preços artificialmente baixos, trazendo enormes prejuízos aos investidores em etanol. Essa ameaça se torna ainda mais concreta se houver políticas governamentais populistas de subsídios aos derivados, o que não é raro no Brasil.
Um primeiro sinal de que essa ameaça não é uma paranoia de ambientalista é a possibilidade de o governo autorizar a utilização de diesel em veículos leves. Já tramita no Senado projeto de lei que trata da matéria e, recentemente, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, declarou haver um grupo no Ministério estudando o assunto. E onde há fumaça, termo perfeito em se tratando de diesel, há fogo. A proposta é descabida, por diversas razões. A primeira reside no fato de o País importar diesel e a sua autossuficiência plena estar prevista somente para a partir de 2015. A segunda razão é que o diesel tem subsídio tributário, ou seja, sofre tributação de 23%, inferior aos 44% da gasolina automotiva. A terceira razão é ambiental e está diretamente relacionada à qualidade do diesel e dos motores que o utilizam no Brasil. O teor de enxofre do diesel brasileiro é 180 vezes maior que o do produto utilizado nos países desenvolvidos, o que impede até mesmo o uso de filtros e catalisadores eficientes nos veículos. Isso significa maior emissão de poluentes: mais partículas, gás carbônico, óxidos de enxofre e óxidos de nitrogênio do que a gasolina e o etanol. O uso do etanol evita cerca de 70% da emissão de gás carbônico do diesel.
Os defensores da medida alegam que nos países europeus o diesel é mais utilizado do que a gasolina. Mas lá a qualidade do diesel é comparável à da gasolina e a tecnologia dos motores utilizados faz os nossos veículos poderem ser considerados dinossauros poluentes. E se há algo pior para o meio ambiente do que um motor a diesel obsoleto, é um motor a diesel desregulado, o que é a regra, e não exceção, no Brasil. Como se não bastasse tudo isso, o carro a diesel é 20% a 30% mais caro que um veículo a gasolina ou flexfuel. Melhor seria para o País a utilização de etanol em veículos pesados ou sua adição ao diesel.
Muitos especialistas já alertam sobre o perigo de o Brasil contrair a chamada doença holandesa, com a inundação de dinheiro na economia que pode vir da produção do petróleo da camada pré-sal. Outra doença tão ou mais grave, porém, é o País retroceder e sujar sua matriz energética ao inviabilizar as fontes renováveis, como o etanol. Faz todo o sentido e merece atenção a faixa de protesto exibida na cerimônia de lançamento dos quatro projetos de lei do pré-sal – “Pré-sal e poluição: não dá pra falar de um sem falar do outro.”
(O Estado de SP – 24/09/09)
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