Faz sete anos participei de um seminário no qual, em uma das sessões, Charlie Rose entrevistava Henry Kissinger sobre geopolítica e o mundo em geral. Me impressionou a clareza mental e o conhecimento de Kissinger, já então beirando os 90. Não me surpreendeu, portanto, vê-lo, agora com 95 anos, como entrevistado do Almoço com o Financial Times de sexta passada.
O tema era para ser Donald Trump, mas Kissinger evitou falar sobre ele. Uma de suas observações, porém, me marcou: “Trump pode ser uma dessas figuras que aparece de tempos em tempos para marcar o fim de uma era e fazer com que se abandone o velho faz de conta. Isso não significa necessariamente que ele sabe disso, ou que ele tenha em mente uma grande alternativa. Pode ser apenas um acidente”.
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Faz algum tempo tento entender o que está por trás do comportamento até certo ponto surpreendente do presidente americano. Trump parece obcecado com o déficit comercial americano, mas sempre duvidei que fosse só disso. Minha leitura inicial era que o foco do protecionismo americano convergiria para a China, não pelo seu superávit comercial com os EUA, mas porque esta deve se tornar a maior economia do mundo e tem ambições geopolíticas que conflitam com as americanas, aí incluída a liderança em tecnologias de ponta com aplicações militares diversas (ver https://bit.ly/2Lf1XJk).
Assim, estaríamos apenas nos acomodando à maior importância da China no mundo, que já vinha de antes. A própria negociação da Parceria Trans-Pacífica no governo Obama já era parte desse processo. Trump só estaria reforçando esse objetivo, focando mais claramente no acesso às tecnologias de ponta.
Não foi, porém, o que se viu. Trump seguiu brigando com todo mundo, inclusive aliados históricos, como Canadá, União Europeia e México, enquanto fazia afagos à Coreia do Norte e à Rússia. Sem falar do rompimento do acordo com o Irã, que tanto trabalho dera a seu antecessor e aos europeus, ainda que a lógica nesse caso pareça ser outra (ver artigo de Adam Entous no New Yorker: https://bit.ly/2kYJaTd).
Um elemento fundamental desse processo é que, também nas rusgas com os aliados, Trump mistura os temas de comércio exterior com os de defesa: não apenas ameaça subir as tarifas sobre as importações europeias, mas também exige que os países da região dobrem seus gastos militares, arrumando brigas nas reuniões do G7 e da OTAN.
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Isso me traz de volta à observação de Kissinger: será que estamos transitando para uma nova ordem mundial, com mais mudanças do que só um papel mais destacado da China? Hoje isso me parece mais provável do que antes.
Por trás desse processo está uma reavaliação, pelos americanos, dos custos e benefícios da ordem mundial que instituíram após a II Grande Guerra. Nesta, os americanos aceitavam manter sua economia mais aberta que as demais e gastar mais em defesa que seus aliados, em troca de promover a abertura dos demais mercados para seus produtos e suas empresas, ter o dólar como moeda de reserva internacional e garantir uma supremacia geopolítica, pelo menos entre seus aliados.
Essas regras promoveram um jogo de soma positiva, que ajudou todo mundo, em especial os próprios EUA. De início, a produtividade americana era tão mais alta, que compensava o maior protecionismo dos outros países. Quando isso deixou de valer para a indústria, os EUA expandiram suas exportações de serviços sofisticados, como finanças, cinema, serviços de informática etc. Não por outra razão, os acordos comerciais negociados pelos EUA nas últimas décadas focaram muito mais nessas áreas do que no comércio de bens.
O problema é que com isso a distribuição dos ganhos com a integração internacional mudou dentro do país: ganharam os trabalhadores mais instruídos em setores tipicamente localizados em uma das costas, perderam os menos escolarizados que vivem nos estados do interior americano (ver gráfico abaixo).
Foram estes que elegeram Trump e os republicanos no Congresso, ainda que não só eles estejam reavaliando o interesse em manter a velha ordem. Por isso, a belicosidade do presidente americano não vai diminuir até as eleições legislativas de 6 de novembro próximo.
Tendo a achar, porém, que esse processo deve ir além, inclusive porque também na Europa há insatisfação com a velha ordem e um recrudescimento do nacionalismo. Trump pode ser, de fato, o “presidente acidental” de que fala Kissinger. Se estiver certo, teremos tempos interessantes, mas difíceis pela frente.
Fonte: “Correio Braziliense”, 25/07/2018