“As casas americanas não têm muro. É um índice psicológico. A vida de comunidade não compete com a vida de intimidade. É uma continuação, se não for, ao contrário, uma fonte.”
Alceu Amoroso Lima, A Realidade Americana (1955)
Aqueles primeiros brasileiros que visitaram os Estados Unidos – gente do porte de Monteiro Lobato, Anísio Teixeira, Érico Veríssimo e de Vianna Moog – deram-me régua e compasso para “ler” o Brasil. Porque, num sentido implícito, como desvendaram os antropólogos na figura pioneira de um Gilberto Freyre (que por lá andou, tornando-se mais brasileiro), ao descobrir a América, redescobriam o Brasil numa complexa dialética de presenças e ausências. Só os idiotas viajam para dizer que foram, comeram, compraram e viram e não aprenderam coisa nenhuma!
A observação que abre esta crônica alinhavou toda uma interpretação da vida social brasileira que expressei num conjunto de trabalhos lidos, usados, criticados, recalcados e ignorados.
Entre nós, a casa murada, com estátuas de leões nos seus limiares e cachorros ferozes nos seus quintais, defendia-se da rua. Nos Estados Unidos, prossegue Alceu Amoroso Lima, “a vida em comunidade precede à vida de intimidade. O geral, nesse terreno, se antecipa ao particular. O público ao privado. Não há homem público (…) que não tenha a sua altura, os seus ordenados ou rendimentos e até mesmo a sua dieta posta em pratos limpos. Não há barreiras entre a sala de visitas, a sala de jantar e até mesmos os quartos. Tudo é público”. E, um pouco mais adiante, com profundidade característica e sem os labirintos retóricos, típicos dos presunçosos que infestam o nosso mundo público, arremata: “A comunidade mata a intimidade naquilo que tem, por vezes, de mais precioso. As linhas suprimem as entrelinhas. A vida superficial se desenvolve em detrimento da vida profunda.” (pág. 41 da obra mencionada)
Ou seja, na América, não há – como tenho reiterado no meu trabalho – contraste ou paradoxo entre as normas da casa e as da rua. Para bem e mal, ambas – intimidade e vida pública – são expressões de um mesmo e único conjunto de leis escritas no papelório jurídico e – como dizia Rousseau – nos corações.
Quando visitei os Estados Unidos, em 1963, tive o mesmo choque. Não havia muros. A igualdade como valor (e como causa perdida a ser incessantemente perseguida e implementada) suprime muros e conduz a uma terrível transparência. Um dos preços da tal democracia boa de falar, complicada de fazer e duríssima de praticar, é derrubar muros. Mas eis que, neste Brasil democrático, estamos pensando em construí-los em volta de favelas como um modo “ecológico” de proteger a natureza!
A Grande Muralha do Rio de Janeiro – terra do carnaval, da praia e da mistura aberta – prestes a ser edificada não terá nada a ver com ausência de coragem política para zonear a cidade, com o uso dos instrumentos apropriados – fiscalização, policiamento, aplicação da lei, distinção plena e clara do legal e do ilegal – mas será parte da “questão ecológica?. No passado, quando éramos mais honestos e cada qual sabia o seu lugar, os escravos viviam enclausurados em senzalas; hoje, usamos o ideário da correção política e falamos em proteção ambiental para segregar os mais agressivamente desiguais.
Construindo um “muro ecológico” mudamos, como convém, os termos do problema. Não se trata mais de conviver com uma avassaladora pobreza historicamente engendrada por um sistema que odeia a igualdade na prática, para incensá-la no altar do politicamente correto. Não! Trata-se, isto sim, de proteger a natureza. A proteção da natureza racionaliza a solução definitiva inapelável (e, portanto, ditatorial) para a pobreza em massa, que envergonha (e ameaça) os que residem ao seu redor. Quando descobrirmos mais invasões, a culpa terá sido do muro, não nossa.
De minha parte, eu – um conservador de carteirinha e já em várias listas de paredão – continuo achando incrível que se continue a pensar que um muro (e não um programa pra valer de educação primária, secundária e de igualdade em geral) vai estancar a desigualdade; tal como no período escravista pensávamos que a Lei do Ventre Livre ia, um belo dia, liquidar espontaneamente a escravidão.
Um muro para deter o avanço da iniquidade social que nós não conseguimos sequer equacionar não vai deter coisa alguma. Antes de realizar tal monumento ao nosso gosto pela sacralização da desigualdade em escala estupidamente grandiosa, vale a pena pensar numa coisa óbvia. Todo muro tem dois lados. Se do lado de cá, ele impede o avanço do nosso descaso para com os pobres; do lado de lá, ele vai servir de trincheira, casamata e torre para os que se aproveitam da pobreza “criminosamente” e não apenas pelo voto. Com o muro, concretiza-se o que o Zuenir Ventura diagnosticou como uma cidade partida que, murada, será irremediavelmente repartida.
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