Meu título ideal seria “o problema do passado e o passado como problema”, mas ele é grande demais para o jornal que vai embrulhar as batatas dos vencedores. Ou seja: os “anos atrás” (e como poderiam estar à frente?), esse cacófago que forma, ao lado do “escapei do pior”, o par de burros de nossa insensibilidade para com uma escrita atenta e que, encarnados na vontade de perpetuar até a eternidade certos documentos, é o nosso novo problema.
Outro nome cogitado foi “uma teoria da ferida”. Minha inspiração vem da justificativa do presidente do Senado, José Sarney, ao racionalizar a sua adesão a evitar que certos documentos pudessem ser abertos a nós, os cidadãos comuns desta sociedade a quem tanto ele, Sarney, quanto todos os chamados “órgãos de controle” e todos os arquivos, bem como todos os tijolos, mesas, papéis e funcionários do Estado, têm o dever de honrar e servir. E aqui está o nó da questão.
Pois para José Sarney, como para Fernando Collor, soltar alguns documentos da sua prisão dos anais do poder abre feridas. E como um dos donos do poder à brasileira, ele invoca uma teoria de inspiração eugenista (que tem sido a base reacionária para justificar o nosso racismo) para mais uma vez tentar impedir o fim da conversa de um Brasil dos patrões e barões (que sussurra segredos) com o Brasilzão igualitário que exige todos os diálogos. Não apenas para tentar botar na cadeia os que usam cargos públicos para reencarnar baronatos, mas para ter uma maior compreensão dos seus caminhos. Para ver o que se esconde debaixo do tapete.
Com a sua “teoria da ferida”, Sarney revela como estamos muito mais no “1984” de George Orwell do que no 1848 de Marx e Engels. Se com o seu manifesto eles queriam liberar as forças sociais, o primeiro vislumbrou um mundo no qual quem dominava o presente subjugava o passado. Seu herói, um certo Winston Smith, membro de um já brasileiro Ministério da Verdade, exercia a função sugerida por esses nobres ex-presidentes e outros potentados da nossa cena política: reescrever o passado de acordo com o interesse do Partido. Coisa realizada por esse mesmo Sarney com o mesmo argumento há algumas semanas, quando tentou suprimir do painel histórico do Senado o impeachment de Collor.
O uso do eterno como dimensão de legitimidade é um dado das sociedades hierárquicas. Em vez de discutir o passado, elas preferem o seu enterro e a sua supressão. Não foi isso que nos fez queimar os arquivos da escravidão que, dizem alguns historiadores, evitou indenizar os escravocratas naquilo que seria uma “bolsa da escravaria”, mas que – e esse é o ponto – impediu conhecer melhor as implicações de um estilo de vida escravocrata?
Em sistemas onde tal tendência coexiste com a dimensão igualitária e competitiva, como é o caso do Brasil, esse traço se transforma numa borra. É uma excrescência reacionária que contradiz brutalmente toda a utopia do partido que elegeu a primeira mulher presidenta da República. Trata-se de uma negação da história que, em vez de ser lida como algo que foi feito por pessoas em certos contextos e sob o governo de conceitos, crenças e valores – podendo ser avaliada e, reitero, usando a palavra em itálico, compreendida -, repete dogmas e promete uma demagógica mudança do presente para não ler um passado que pode ferir, como quer Sarney, ou curar, como quer este cronista de Niterói.
Só os infalíveis são prisioneiros do eterno. Deus é eterno e, por isso, nada lhe é estranho. Ora, a democracia igualitária nasce justamente pela relativização do eterno e pela presença do humano que é necessariamente finito, falacioso, interesseiro, transitório, doente, deprimido e também – e, por isso mesmo -, confiante e orgulhoso de sua condição. Eternizar é esquecer e esquecer é deixar de lembrar. Há doenças que impedem a lembrança, mas no caso do Brasil de Dilma, Sarney e Collor, trata-se de bloquear a lembrança por decreto! Por um ato do Estado que se coloca como um pedaço independente da sociedade e dos valores que governam o todo, do qual este Estado, quer ele queira ou não, faz parte.
Essa eternização de papéis que escapam das classificações normais reitera algo que percorre minha obra. O fato de que, no Brasil, o Estado se situa como um pedaço independente da sociedade. Parodiando Pascal, como um coração que, no entanto, tem razões que a sociedade desconhece.
Trata-se, mais uma vez, de uma blindagem. Agora não é mais do chefe da Casa Civil, mas de documentos que, por motivos que escapam ao bom-senso republicado, deveriam ficar com Deus nessa eternidade que, no fundo, é o nada de onde viemos e para o qual – salvo a fé e a esperança – retornaremos.
O esquecimento é o maior amigo dos poderosos porque ele impede o diálogo entre o dito e o não dito, entre o que se revela e o que se esconde. Tudo o que constitui a reflexividade daquelas mãos que se desenham a si mesmas de Escher, sem a qual não existe alma e humanidade.
Que se blindem os venais que preferem honrar o sigilo dado às empresas para as quais deram consultorias milionárias, deixando de lado o papel honroso de servidor do povo brasileiro como chefe da Casa Civil, entendemos todos numa era onde o assalto é feito em rede, mas que se imunizem e higienizem o que é de todos, ultrapassa o bom-senso. Mesmo nesse mundo lulo-petista onde reina, até palavras e ações em contrário, a mendacidade.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 22/06/2011
espetacular clareza e verdade neste artigo !