Na mira da reforma tributária do imposto de renda apresentada na semana pelo governo, estão dois mecanismos implementados no Brasil nos anos de 1990 e que praticamente não existem em nenhum outro lugar do mundo: o primeiro deles é a isenção de impostos nos dividendos, que é a parte do lucro das empresas paga a seus donos e acionistas. O outro são os juros sobre o capital próprio (JCP), uma outra forma incentivada de remuneração aos acionistas e investidores do negócio.
A proposta desenhada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, quer taxar o primeiro, em troca de reduzir um pouco o imposto sobre as empresas, e extinguir o segundo, que, de acordo com a equipe econômica, foi criado em um tempo em que as empresas tinham pouco acesso a crédito e hoje não tem mais sentido.
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Com isso, o sistema ficaria mais simples, com só um tipo de distribuição de lucro (o dividendo), e mais equilibrado, com empresários e investidores também pagando seu quinhão de imposto sobre essa que é uma das principais fontes de renda de muitos deles. De quebra, o Brasil deixaria também o título de um dos únicos países do mundo onde o dividendo é livre de tributos.
Para o consultor jurídico e ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, porém, ambas são péssimas ideias – além de o conceito estar errado. Maciel, chefe da Receita entre 1995 e 2000, ajudou a criar as duas coisas. Elas foram implementadas em uma reforma tributária feita pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em 1996, comandada pelo então ministro da Fazenda Pedro Malan.
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Em entrevista ao CNN Business, Maciel defendeu que voltar a tributar os dividendos cria uma série de distorções que traz mais prejuízos do que ganhos para o país, como novos tipos de sonegação dos empresários e a necessidade de tributos ainda mais altos para manter a mesma arrecadação.
“Se os outros países não fazem assim, a pergunta deve ser dirigida a eles. Eu entro em debate com qualquer um deles para demonstrar que estão errados. O Brasil não pode estar certo? É complexo de vira-lata.”
Quanto ao fim dos juros sobre capital próprio, ou JCP, o ex-secretário não só afirma que vai tirar investimentos das empresas e aumentar o endividamento delas, como rebate a explicação vendida pelo governo: “O governo disse que ele foi criado porque as empresas tinham dificuldade em contratar crédito. É uma vergonha, nunca foi isso.”
A razão de introduzir o JCP, conta um dos donos da ideia, era dar uma nova possibilidade de dedução de imposto às empresas em um momento em que a carga estava subindo e, ao mesmo tempo, estimular investidores a colocarem mais dinheiro nelas. Isso, inclusive, está explicado na justificativa da lei que promoveu as mudanças.
Já sobre o quadro completo da reforma tributária proposta pelo governo, Maciel se une ao coro uníssono de especialistas quanto ao impacto – “vai ter aumento de carga” – e a parte deles quanto à avaliação – “é o pior projeto que já vi”, diz.
O que é o dividendo e o JCP
Tanto os universais dividendos quanto a versão brasileira dos juros sobre capitais próprios, ambos queridinhos dos investidores que têm ações na bolsa de valores, são formas de a empresa remunerar seus donos e acionistas com parte do que geraram de lucro. As empresas no Brasil podem optar por um ou outro.
Os dividendos, no modelo atual, não têm imposto nenhum. Nos juros sobre capital próprio, o investidor paga 15% em imposto de renda, mas as empresas gostam muito de usá-los porque permitem deduzir parte do imposto que devem: como os juros são considerados um tipo de despesa, pagá-los reduz o lucro final e, com isso, também o IR a ser pago, já que ele é aplicado sobre o lucro.
É o benefício dessa dedução que a reforma de Guedes está cortando – o que, na prática, tira a única razão que mantém o JCP vivo e deve levá-lo ao desaparecimento por morte natural.
Dividendos: imposto mais alto e sonegação invisível
Em todos os outros países do mundo, o imposto de renda corporativo é recolhido em duas frentes: no lucro total apurado, ainda dentro da empresa, e no pedaço desse lucro distribuído aos donos, sócios e investidores, que é o dividendo. Neste caso, o IR é pago pela pessoa física, já do lado de fora da companhia.
No Brasil, esse combo tributário é hoje de 34% e é cobrado todo dentro da empresa. O dividendo é repartido do que sobra depois da tributação recolhida, e não paga mais nada. A crítica é que o peso tributário sobre o negócio fica muito grande, enquanto ter imposto no dividendo desestimula a empresa de distribui-los, o que mantém mais lucros do lado de dentro e incentiva investimentos.
A nova reforma propõe subir do zero para 20% o IR no dividendo enquanto reduz o da empresa em 5%, dos 34% para 29%.
Para Maciel, o inusitado modelo brasileiro continua sendo a maneira mais eficiente de evitar desvios tributários muito comuns feitos pelos empresários e não perder arrecadação.
Além disso, o simples fato de haver imposto sobre o dividendo desestimula as empresas a distribui-los, o que significa que haverá um pedaço de bolo menor deles para a Receita morder e resulta em mais queda de arrecadação.
Maciel explica que existe um fenômeno de sonegação muito conhecido e de dificílimo enfrentamento, que no Brasil, segundo ele, deixou de existir, que é a distribuição disfarçada de lucros:
“Se eu tenho uma empresa e os dividendos estão isentos, eu distribuo os dividendos e compro casa, carro, minhas coisas. Mas se eles estão tributados, eu nem distribuo. É melhor deixar o dinheiro dentro da empresa e comprar a casa ou o carro no nome da empresa. E como fiscaliza isso?”
O ex-secretário também destaca que, com parte da tributação no dividendo, é necessária uma alíquota muito maior para conseguir manter a mesma arrecadação – não à toa, é o que acontece na proposta de Guedes, em que o dividendo sobe 20% para o IR da empresa cair 5%.
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“A relação que existe entre a tributação de dividendo e na empresa é de 1 para 4, porque o dividendo é só um pedaço do lucro. Isso são estudos da própria Receita Federal. Se eu reduzo a alíquota de 34% da empresa em 1 ponto, para 33%, eu tenho que tributar o dividendo em 4%. Se baixar em 10%, tenho que botar 40% no dividendo; apenas para ficar igual.”
Juros sobre capital para atrair investimentos
Os juros sobre capital próprio são uma mistura entre o dividendo, que é o lucro pago aos sócios como retorno de seus investimentos, e os juros financeiros, pagos aos bancos e credores nos empréstimos.
“É um juro fictício, claro, uma ficção jurídica. Mas foi criada uma nova forma de remunerar o capital.”
Como os juros financeiros, os JCPs também são contabilizados como despesa e deduzem imposto. A diferença é que são pagos para quem investe na empresa, e não para quem empresta – por isso “sobre o capital” –, e sem a necessidade de devolver o valor aportado.
É por isso que eles ajudam a atrair investimentos e, caso deixem de existir, na opinião de Maciel, vão levar as empresas a recorrer mais a empréstimos para levantar dinheiro.
“Suponha uma empresa estrangeira com filial no Brasil, e que decide capitalizar a filial brasileira. A matriz pode fazer isso de duas maneiras: com um investimento direto, que tem riscos, ou um empréstimo. Sem o juro remuneratório do capital [JCP], o empréstimo será mais vantajoso. Empréstimo não é capital de risco, ele volta, e a filial, quando paga os juros, deduz do cálculo do IR dela. Os juros sobre capital equipara as duas coisas“, diz.
A teoria desse mecanismo, conta Maciel, foi concebida ainda nos anos de 1960 pelo economista e ex-ministro da Fazenda Otávio Gouveia de Bulhões, mas só com a reforma de 1996 Maciel e equipe a trouxeram para a legislação brasileira.
“Acabar com os juros sobre capital vai estimular o endividamento, aumentar a carga das empresas e tirar as estrangeiras que estão aqui por isso. Você sabe o esforço que é convencer o investimento estrangeiro a vir para cá? Temos confusão de todo o tipo. Eles só vêm por duas razões: isenção do dividendo e a dedução dos juros sobre capital próprio. ”
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A ideia primeira ao adotar o JCP na reforma de 1996, de acordo com Maciel, foi criar uma fonte extra de dedução de imposto para as empresas em um momento em que a carga delas ia subir, já que a mesma reforma extinguiu a regra herdada dos anos de hiperinflação que permitia deduzir a correção monetária na apuração do imposto de renda.
É por isso que sua extinção agora, sem novas contrapartidas, na visão de Maciel e de outros tributaristas, terá o efeito de uma carga maior para as empresas.
“A eliminação da correção monetária do patrimônio líquido teve impacto pesadíssimo para as empresas, e aí buscamos fazer algo compensatório. Com isso [a introdução do JCP], mitigávamos a reação e, ao mesmo, tempo resolvíamos outro problema, que era atrair investimentos. Eram dois alvos, não só um. Em 1996, para cada R$ 3 emprestados no Brasil, tinha R$ 1 em investimento direto. Em 1997, isso tinha se invertido: eram R$ 3 de investimento para R$ 1 em empréstimo.”
Everardo Maciel